domingo, novembro 23, 2008

Meu filho nasceu sabendo perfeitamente a diferença entre o dia e a noite. O dia é para dormir; a noite, para farrear. É a distinção fundamental, que contém toda a dicotomia do universo. Não tenho dúvidas de que o João já entende a oposição entre o doce e o salgado, o claro e o escuro, o bem e o mal, o azul e o vermelho.
+++
Tentarei explicar o inexplicável, relatar os sentimentos que acometem um pai de primeira viagem quando nasce o filho, o que se passou antes e depois das 23h39min do dia 17 de novembro de 2008, quando o João Ritter Com Dois Tês dos Santos de Araujo Sem Acento Ribeiro veio ao mundo.
+++
Dos fatos: na sexta e no sábado a Rafa submeteu-se a duas ecografias para verificar se, digamos assim, um ‘vazamento’ percebido não era de líquido amniótico, o que precipitaria uma cesariana. Não era. Ao ouvir o diagnóstico da médica, a Ana Lúcia Letti Muller Recomendamos, minha mulher descobriu de uma só vez que possuía um tampão e que ele havia rompido. O parto poderia demorar alguns dias.


No sábado, entretanto, começaram as contrações. Leves e a cada 30 minutos, moderadas e a cada 20, fortes e a cada 10, insuportáveis e a cada 4. Esse último nível, já na manhã de segunda-feira, quando fomos ao hospital. No centro obstétrico, uma máquina foi ligada à Rafa para medir o ritmo e a intensidade das contrações. Imediatamente, de inopino, as insuportáveis e a cada 4 minutos ficaram moderadas e a cada 15, pelo menos até o aparelho ser desligado. Meu pai disse que é como chamar um técnico para ver a TV e, quando ele chega, o aparelho está funcionando perfeitamente. A Rafa foi mandada de volta para casa.
+++
A tarde foi insuportável para a minha pobre mulher. O dilema era o seguinte. As contrações estavam horríveis, mas o bebê só tinha 37 semanas, enquanto o ideal são 40 para nascer. Havia uma remota possibilidade de o pulmãozinho ainda não estar formado 100%, e o João ter de ficar na incubadeira, feito pinto. Mas, com o ritmo voltando para insuportáveis e a cada 4, conversamos com a médica e tomamos uma decisão: o João estava pedindo para sair - de parto normal ou cesariana, era hora de ele nascer.
+++
A decisão me trouxe um alívio e uma alegria serena. Como minutos antes de meu casamento. Com calma, saí do apartamento dos pais da Rafa, onde meu pai já tomava um uísque para se tranqüilizar e nossas mães prestavam apoio à parturiente, e vim até minha casa. Peguei nossa mala e a bolsa do João, que já estava pronta, e tranquilamente, tomei um banho. Busquei a Rafa e rumamos para o Hospital. Às 21h estávamos no Moinhos.
+++
Desde o início da gravidez, que agora vira gestação, assim como dar de mamá vira amamentação, tenho procurado ser um pai participativo. Diz que é moderno participar. Mas eles, médicos, que não deixam muito. O pai não pode acompanhar o primeiro exame no Centro Obstétrico e nem o começo da cesárea.
Tinha dito à Rafa que apoiaria qualquer decisão dela. Quando entrei no Centro Obstétrico, ela me informou que faria uma cesárea. Tranqüilo, pensei. Até que a enfermeira informou: a doutora marcou o procedimento – cirurgia vira procedimento – para as 23h. Meu Deus! Já eram 22h30min. Quando a médica chegou, ainda pedi para ela atrasar a função, para o João nascer dia 18 e não ter de comemorar aniversário em feriadões. Em vão.
+++
Até eu entrar no vestiário onde deveria tirar a roupa e vestir o camisolão verde, estava tranqüilo. Só ali, sozinho, me dei conta de que alguma coisa realmente importante aconteceria. É como se tudo o que se passara na minha vida estivesse virando passado. De uma hora para a outra. Alguma coisa nova estava chegando para mudar tudo para sempre. Neste momento, olhei para o banheiro e pensei em quantos pais já haviam se utilizado dos serviços daquela privada. Se eu me caguei? Literalmente.
+++
Paramentado, de camisolão, touca, protetor de pés e máscara, fui para a sala dos médicos. Na Globo, passava um filme brasileiro, no qual, por coincidência, um bebê era deixado em frente a uma igreja. Na sala de parto, a Rafa era anestesiada. Ainda bem que a pediatra, Rejane Schmitz Sei Lá Como Escreve Mas É Um Anjo Recomendamos, ficou um pouco comigo. Ela mesma levou-me até o local do procedimento. Encontrei a minha mulher muito enjoada, e as médicas pingando suor de tanto forcejar a barriga. Passaram-se instantes até, de repente, uma delas abrir a cortina e aparecer aquele pedacinho de carne já quase chorando. Colocaram-no, ainda gosmento, sobre a Rafa, que o beijava feito bicho. Não derramou uma lágrima. Nem eu. Ainda iria demorar para eu me emocionar.
+++
Levaram o João para uma sala contígua. Fui junto. Ainda bem que tinha visto Discovery Home and Health e descoberto que bebês ficam roxos logo que nascem. Caso contrário, teria sido um pavor. Viraram e reviraram o João. Quando me dei por conta, ele era um pacotinho em minhas mãos. Peguei-o como achava que um pai deveria pegar uma criança. Sem medo, com firmeza e determinação. Sem fraquejar, eu só queria ser o que se espera de um pai. Tinha um papel e tinha de cumpri-lo a contento. Ponto.
+++
Os primeiros momentos de um bebê são do pai. É ele quem o acompanha, quem o pega, quem o assume, quem tem o controle. Ao menos nos casos de cesárea, em que a mulher está sendo costurada. Com o João no colo, dei-me conta que naquele momento o poder era meu; o poder de decidir o que fazer com ele – levá-lo para a mãe ou para a família? Deixei-o nos peitos da Rafa e corri para fazer um sinal de OK para os tios e avós que aguardavam atrás do vidro do Centro Obstétrico. Voltei à sala de cirurgia, para ficar com a Rafa e meu filho. Espiei por sobre a cortina que separa a cabeça da barriga da mãe e vi coisas que fariam muitos desmaiarem. Descobri que sou forte para isso.
+++
Como disse, os primeiros momentos de um bebê são do pai. Fui eu quem decidiu a hora e levá-lo para o forninho, digo, berço aquecido; foi minha a primeira mão que ele segurou. Acompanhei a pediatra manipulá-lo feito um pedaço de trapo. Vi meu guri levantar a cabeça ao sentir-se sufocado quando de bruços e dependurar-se como macaquinho nos dedos da enfermeira. Descobri ao mesmo tempo que o João tinha Apgar “nove e nove” e que Apgar era um teste para ver reflexos e condições do bebê ao nascer.
+++
Mas o sonho dos primeiros minutos é efêmero. Uma ilusão que se esvai no exato momento em que põem o garoto na teta da mãe. A boquinha que nunca sentiu um seio vai direto no mamilo e suga como se sempre antes. Nesta justa hora, o pai descobre que é ninguém. A vida do filho será teta e teta. Resta a mim, resta a nós, pais, fazê-lo arrotar.
+++
Os momentos no quarto do hospital são malucos. Pela primeira vez na minha vida, a sensação de sonho e realidade se inverteram. Prestes a cair no sono, sentia que voltaria ao mundo ao qual estava familiarizado do sonho e, ao mesmo tempo, abandonaria o mundo mágico que estava vivendo acordado. A realidade era muito mais fantástica do que qualquer sonho. E isso não é figura de linguagem nem metáfora. Realmente, tinha medo de dormir e interromper um sonho que dava vontade de sonhar.

Em que momento eu me senti pai? Sei direitinho quando foi. Tínhamos, os três, passado a noite no quarto. As primeiras visitas da terça-feira já haviam aparecido. A primeira delas, o Dr Flávio Prenna, médico amigo da família, que às 8h me explicou que pouco a pouco os humanos vão abandonar o reflexo primitivo de se dependurar nos dedos das enfermeiras feito macaquinhos em galhos da floresta. A seguir, chegaram alguns familiares, amigos, todos bem-vindos. Em um determinado momento, no entanto, me vi sozinho no quarto com o João. A Rafa no banheiro, provavelmente. Coloquei o guri no meu colo, sentei na poltrona e apenas olhei. A boca, a bochecha, os olhinhos, a orelha. Me pus a chorar e descobri que olhar para aquele rostinho me faria para sempre feliz. E cada vez que paro para observá-lo me vem a mesma paz e o mesmo amor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário