quinta-feira, junho 02, 2022

A História da Hesperidina Bagley


Meu avô paterno cheirava a charuto. Meu avô materno cheirava a Hesperidina.


Se você é ansioso e já deu um Google, descobriu que Hesperidina é um flavonoide encontrado em frutas cítricas, vendida como remédio para varizes, hemorroidas, fortalecimento do sistema circulatório. Mas, antes de sair correndo para a farmácia, fique sabendo: o medicamento tem o mesmo efeito de placebo, ou seja, não funciona - acabei de ler em uma nota técnica da Anvisa. E, antes que a gente descubra que existem por aí hesperediners, já aviso: este texto não é sobre sistema circulatório. É sobre trago.




Hesperidina é também o nome de um um bitter argentino que para meu avô era o néctar dos deuses. Tem o mesmo nome do remédio porque, enfim, contém o aroma e o sabor extraído daquela parte branca por baixo da casca da laranja, de onde vem a hesperidina. Para ser mais preciso, se chamava Hesperidina Bagley, a bebida, pois foi formulada e lançada em 1864 pelo americano Melville Bagley, em Buenos Aires, Argentina.


Ainda não descobri se este cara era um gênio da coquetelaria, mas sabemos que era um gênio do marketing. Sabe teaser, aquela peça inicial que antecede uma campanha, dando uma pista, um spoiler, do que vem pela frente, sem revelar tudo? Ele foi o rei do teaser. Antes de distribuir o seu trago nos bolichos e pulperias portenhos, encheu a cidade de cartazes, onde se lia apenas… Hesperidina. Só. Foram semanas com os argentinos lendo aquilo sem saber o que era, até que as garrafas fossem distribuídas. Quando chegaram aos balcões, consagração!


Até aqui a história já estava boa, porém, nosso amigo Bagley fez um drink tão agradável que, pronto, estava todo mundo o imitando. E usando o nome, como se fosse genérico. Podemos imaginar que ele não ficou feliz. Fosse um cara comum, só resmungaria. Como gozava de algum prestígio, foi reclamar direto com o Presidente da Argentina, Nicolas Avellaneda, aquele mesmo que dá nome à cidade do Racing e do Independiente. Em 1876, então, o país criou seu órgão oficial de Marcas e Patentes. Marca número um registrada na Argentina: Hesperidina Bagley! Aposto que esta nem minha sogra Beth Ritter, su-mi-da-de em propriedade intelectual, sabia.


Meu avô José tinha cheiro de Hesperidina. Transpirava Hesperidina. Mas não é como se víssemos Hesperidina por toda parte pela casa, brindássemos em família com Hesperidina. Não! A Hesperidina era dele. Eu mesmo não lembro de ter provado. À época, achava que era porque ninguém gostava do trago. Hoje, creio que havia uma certa tensão da família relacionada a excessos alcoólicos de vovô. Até porque ele começava a exalar Hesperidina a partir das dez manhã. Na verdade, a lembrança que eu tenho é de que ele literalmente transpirava Hesperidina. Saía Hesperidina pelos poros. Era agradável, até. Entre mil tragos que se pode cheirar a, diria que Hesperidina está entre os mais agradáveis. O puro aroma de laranjas douradas do Jardim de Hespérides. Mas este texto não é sobre mitologia. 


Assim era o Doutor Pombo (assim, pelo sobrenome aviário, acompanhado pela titulação concedida aos advogados - chamavam meu avô): um homem da Fronteira. Um homem da estrada. Vivia entre Porto Alegre, Uruguaiana e São Borja. Na velha D10 branca, palanca no volante. No ônibus Planalto. No Ouro e Prata (com Cyrillinha laranja no refrigerador). Era ainda um homem grande, um tanto gordo, um tanto forte, bigode farto e branco. Ele já tinha uns 80 anos, decerto, quando o vimos chegando a pé, sozinho, pela estradinha de terra que dá acesso à fazenda. Suava e bufava. A inseparável mala de couro na mão - o "pesuelo", como a família dizia. Tinha andado oito quilômetros do asfalto até a casa - a bota, a camisa de dois bolsos (um pente na direita, uma caneta na esquerda), o corpo manchado pela terra vermelha. Esqueceram de pegá-lo no meio da estrada. Ele veio a pé, brabo, furioso, bufando, sem Hesperidina no sangue. À época eu andava com uma Pentax a tiracolo. Fotografei a cena. Eu tinha a foto. Mas não a encontro. E, juro, já nem sei se exisitiu, nem a cena, nem a foto. Simplesmente não faz sentido.


A garrafa de Hesperidina é marrom e bojudinha. Típica. Pela silhueta, os fãs do trago conseguiram identificá-la, bem pequenina, no fundo de um bolicho pintado pelo Molina Campos. Estou até agora procurando a garrafa na cena, mas eles já saíram gritando: Molina pintou a Hesperidina! Molina pintou a Hesperidina. É o equivalente platino de dizer: Da Vinci pintou o homem vitruviano! Meu avô comprava o bitter em caixas. Em São Borja, creio. Até pouco tempo, eu achava que era uma bebida comum, encontrada em qualquer boteco da Terra dos Presidentes.






Descobri há apenas dois meses que não é assim. Primeiro, busquei no Mercado Livre: zero anúncios brasileiros. Depois fui a trabalho a São Borja e prometi que voltaria com uma garrafa para casa. Achei que, perguntando, se encontrava. Mas o taxista, o recepcionista do hotel, o caixa do supermercado, ninguém sequer tinha ouvido falar de Hesperidina. Andei de bar em bar no centro. Perguntei a bolicheiros e gambás. Moços e velhos. Nada! Ninguém conhecia. Não era um vício fronteiriço; era um vício do meu avô.


Final do mês, volto a São Borja. Desde já, estou em busca de um chibeiro. Se não encontrar, cruzo a ponte. Há de ter em Hesperidina e, algum bolicho de São Tomé. Preciso provar esse trago. Saber que gosto tem. Em homenagem ao Doutor Pombo. 



(continua)


PS: sobre o vô Delmar e o cheiro de charuto, conto outro dia…




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