domingo, dezembro 24, 2006

Aconteceu um troço muito punk aqui em casa. Chato mesmo. Eu nem devia estar contando. Me sinto um idiota completo. Acho que a Rafa também. Não desejo para ninguém passar o que passamos agora há pouco. Tem de ter muita abertura para encarar na boa. Sabem aquelas coisas que de uma hora para outra mudam tudo na vida de alguém? Até determinado momento as coisas são assim - a bola é redonda; a terra, azul; a chuva, molhada -; desse instante em diante as coisas passam a ser assado.
Era noite de amigo secreto, a turma reunida, troca de presentes, talecôsa. Nos divertimos, eu tomei umas cervejas, a Rafa, coca e champanha, e voltamos cansados para casa. Giramos a chave e nossa gatinha já nos esperava - como sempre - atrás da porta. Sedentos, pegamos uma água, e o bichinho - como sempre - se meteu para dentro da geladeira, dando-nos um pouco de trabalho para retirá-lo. Mas foi só isso de arte, que logo depois ela sossegou o pito, estirou-se na laje gelada da cozinha e pôs-se a se coçar. Coçada vai, coçada vem, e eu resolvi ajudar. É irresistível, a nossa gatinha.
Mudei o tom da voz para modo criancinha - "cadê a minha gatinha amada do coração" - e cheguei mais perto. Ela estava coçando a xota. Só que a xaninha, coitada, tava vermelha e inchada feito tomate passado. Chamei a Rafa.
- Rafa, vem cá ver que coisa bizarra. A bucetinha da Elza tá pra fora.
Ela se aproximou, conferiu a coisa. Permanecemos calados alguns segundos - um esperando o outro dizer o que um pensava -, nos olhamos, até que ela disse:
- Ai, isto é um tiquinho.
Parecia mesmo. Era estranho, porque ficava para trás, bem embaixo do fiofó. E ticos, até onde eu saiba, são para frente. Se bem que o cachorro sofre com esta história de ter tico pra frente, porque ele gosta mesmo é de ficar bunda com bunda. De todo modo, pegamos a Elza para uma análise anatômica.
Pusemo-la na cama. A Rafa abriu as patas de trás. Eu iniciei a apalpação. O buraco - ufa! - era de xeca. Mas acima dele havia um volume. Aperta aqui, aperta ali, e ficou claro que eram duas bolinhas. Vocês devem estar pensando - óbvio, é um gato -, mas a coisa não foi assim. Ficamos por uns dez minutos apalpando e discutindo, apesar de todas as evidências - eu diria até provas.
- Duas bolas e um tiquinho. É macho.
- Mas me deram como fêmea, Gordo. E ela já foi três vezes na veterinária e ela nunca disse nada.
- Pois é... Não sei. Esse buraquinho para trás parece xeca. Se bem que...
E assim ficamos, pouco a pouco convencendo-nos de que, realmente, Elza podia não ser Elza, embora, isto pareceu-nos claro desde o início, Elzo nunca seria. Já quase convencidos do equívoco, viemos até o computador. Google, imagens, "anatomia gato" e então a prova cabal: a gata é gato.
Sabia que isso era comum. Nas buscas na Internet, lemos muitos casos semelhantes. A falecida gata dos pais da Rafa era Kanu, o jogador de futebol, até descobrirem que ela era Kanu, uma femeazinha com nome original. Mas nunca pensei que tal infelicidade aconteceria comigo. A verdade é que só passando pelo que passamos é possível entender o que sentimos. Sofrimento, estupefação, desespero, perplexidade, desorientação - tudo junto. Enquanto isso, as peças vão se encaixando: é verdade, uma gata não morderia daquele jeito, os traços da cabeça sempre foram meio masculinos, nunca houve sinais de menstruação, etc...
Bom, a verdade é que ainda estamos absorvendo o impacto. Apesar desse relato superlativo, que mais pode parecer um deboche, é bem complicado, sim. A primeira providência que tomamos foi trocar o nome. De Elza Briseida para Aquiles. Na mitologia grega, Briseida é a paixão de Aquiles. Na minha casa, Briseida é Aquiles.

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