domingo, abril 13, 2008

Após a falência da Revista Dois Pontos, por falta de patrocinadores, Sérgio Margarida se viu perdido no mundo. Na última terça-feira, em tentativa desesperada, o irreverente crítico gastronômico ligou-me pedindo para publicar seus textos em meu blógui. É com muita honra que o recebo como colunista - o primeiro deste espaço. Lá vai sua primeira colaboração:

Kati

Comprar carne ovina é uma loteria. Não importa se tem marca, é vendida em butique, faz parte de programa de abate controlado: há sempre o risco de o corte vir catinguento.
Sabe catinga? Aquele cheiro de barba de bode impregnado? Um gosto que causa náusea e instantânea contração nos músculos da face (e do abdôme)? E cuja sensação retorna a cada expirada? Pois é, tem bagual que adora, acha que é coisa de macho. Margarida detesta. Está certo, Margarida fala de si na terceira pessoa, e isso não é lá muito abonador, mas nem por isso deve-se desqualificar sua opinião.
Conversando com quem sabe ou quem diz que sabe, chega-se a três explicações com relação às origens da catinga _ aliás, ensina o Aurélio, termo com origem na palavra guarani kati, ou "cheiro forte". Para alguns, a kati poderia ser causada pela idade avançada do animal (oveia véia), pela raça ou pelo mau procedimento na hora do abate.
De início, Margarida colocou em xeque a questão da idade. A carne ovina mais catinguenta que já comeu foi um filezinho de cordeiro ao molho de mostarda. Prato lindo, receita tentadora e uma kati absolutamente desproporcional à delicadeza do corte. O problema era que a carne era de "marca", de "cordeiro mamão": como podia então ter aquele gosto repelente? Foi então que um criador amigo, adepto da teses que envolvem idade e raça, respondeu:
- Rapaz, eles dizem que é cordeiro. Eu sei que não é, porque eles oferecem para comprar meus bichos e da redondeza. E embarcam de qualquer idade e de qualquer raça. Tem oveia véia, eles compram.
A diferença de gosto entre as raças é uma explicação que sempre agradou a Margarida. Este colunista freqüentou o campo ao longo de toda sua vida. Lembra-se da kati da carne servida na fazenda do avô lá pela década de 80, quando se criavam raças específica para produção de lã. E sabe como o cheiro ruim desapareceu totalmente após a migração para a raça texel, voltada à produção de carne. A melhor paleta assada que Margarida já comeu - daquelas macias, suaves e ca-ra-me-la-das - foi de um animal suffolk criado (tipo carne) na Cabanha Picumã, de Butiá, do Rogério Silva, um veterinário muito gentil e que, aliás, tinha um carneiro megasuperultraresistente a vermes na propriedade, mas isso é outra história.
Quem defende a tese da forma de carnear é o marido da Letícia Picoli, outra veterinária querida totalmente apaixonada (e especializada) por ovinos. Pois o cara, cujo nome eu não lembro, com a chancela da mulher, diz que o problema é quando o carneador encosta a carne na lã. Se isso acontecer, com o perdão da expressão, fodeu. Essa, aliás, é uma tese antiga, mas Margarida não acredita muito nela, não. Duvida que nos grandes frigoríficos haja processos múltiplos de abate, e ainda assim a carne oriunda deles sai às vezes com kati, às vezes sem.
É essa inconstância odorífera ou gustativa, vamos assim chamar, que faz com que tanta gente não goste da carne ovina, que é a melhor que há entre as vermelhas (quando está boa). E que, por fim, limita o mercado e até os preços do produto. Afinal, não é todo mundo que aceita arriscar. Da parte de Margarida, continuará apostando na loteria, porque acha que uma costelinha de cordeiro boa compensa outras mil com kati.

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