Olhos no nada, boca sem dentes, fala embaralhada pelo andar de bar em bar, o homem aproxima-se do balcão. Do outro lado, o bolicheiro Monte, 65 anos, pergunta, apenas para precipitar uma resposta que nunca muda.
- Que quieres?
- Rá! Que pergunta! - provoca o cliente, alguns tons além do esperado para o ambiente.
Como quem ouvisse uma resposta clara, Monte serve o de sempre. Em um copo curto de cachaça, mistura quatro partes de aguardente e uma de "Catuaba Carinhoza", um "coquetel de vinho tinto suco de maçã xarope de maçã fermentado de maçã e catuaba" - assim mesmo, como no rótulo, sem virgulas e com um Z no lugar de um S.
Cinco de janeiro de 1976. É véspera do Dia de Reis, quando os uruguaios trocam presentes, em um ritual que na cultura brasileira ocorre na véspera de Natal. Nascido com o pomposo nome de Herbert Vicente Montenegro Felipe e transformado pela vida simplesmente em Monte, o então fotógrafo e artesão assava uma carne na grelha em companhia do sogro, Armando, e dos dois enteados, os quais chama de filhos, Diego e Federico, então com cinco e seis anos, respectivamente. Na casa em Pocitos, bairro nobre de Montevidéu, esperava com a família a chegada da mulher, Libertad, atrasada por causa do tradicional serão do comércio na data.
Mas quem chegou primeiro foram os militares. Pouco antes da meia-noite, bateram à sua porta, anunciaram a prisão e confiscaram suas fotos, câmera, equipamentos, embora Monte relate que só fazia imagens de eventos sociais – festas, casamentos, aniversários. Os quatro anos seguintes o uruguaio passou na cadeia.
Trinta e três anos, nove meses e oito dias separam o episódio da prisão do prosaico pedido do drinque de Catuaba Carinhoza no bar localizado no bairro Azenha, em Porto Alegre (RS). Mas, de alguma forma, a prisão está ligada à rotina atrás do balcão que o destino reservou a Monte. Não fosse a ditadura que perdurou de 1973 a 1985 no país vizinho, é provável que o bolicheiro levasse outra vida. No início dos anos 1970, ele estudava na Escola de Belas Artes de Montevidéu. Mas nunca concluiu o curso. Antes disso, a faculdade, núcleo do movimento estudantil, foi fechada pela repressão da ditadura. "Entrei de gaiato nesta de bolicho. Foi meu sogro que inventou esta história de bar, lancheria. Mas agora é tarde para mudar. Não terminei nada", resigna-se, em espanhol, atrás de uma empoeirada máquina registradora analógica, fora de uso há anos, que alguém parece ter esquecido de tirar do balcão.
A chegada da família a Porto Alegre foi em 1982, quando Monte ainda se sentia reprimido no Uruguai por ter de se apresentar à Justiça regularmente. Vieram a convite de Armando, falecido em 1990, pai de Libertad, fruto de romance com uma uruguaia. Pouco depois, nasceu o primeiro filho do bolicheiro com a esposa, Maurício, hoje com 24 anos. Desde a chegada ao Brasil, o Bar do Monte sobrevive no mesmo e antigo casarão de esquina, construído na década de 20, ele informa; um lugar onde o tempo passa na velocidade em que os cupins corroem a madeira do balcão. Va-ga-ro-sa-men-te... Cada dia é igual ao outro. Da abertura, pela manhã, ao fechamento, à noite, sucedem-se os mesmos personagens de ontem e de anteontem. A maioria alcoolistas que percorrem um circuito nos botecos da região. Cada um com sua esquete. Tem o que discursa, o que passa horas quieto escorado no mesmo canto, o que fuma sem parar enquanto tem a boca carcomida pelo câncer.
Monte prefere afastar-se da clientela para contar esta história. Militante da União da Juventude Comunista Uruguaia na década de 1970, ele lembra ter sido preso brevemente pela ditadura outras vezes antes de 1976, por atitudes subversivas. Mas relata nunca ter aderido à luta armada; suas atividades políticas resumiriam-se a protestos, reuniões, pichações. O suficiente para levá-lo à prisão naquela véspera de Dia de Reis. Nos primeiros seis meses de cárcere, Monte conta ter ficado incomunicável, encapuzado boa parte do tempo, muitas vezes de pés atados.
Ele não consegue – ou não quer – lembrar com detalhes esses tempos. Prefere o relato genérico a outro mais pessoal. Mesmo quando confrontado com perguntas diretas, esquiva-se. Impossível não arriscar dizer que as minúcias pungentes estão escondidas em seus olhos sempre baços e pesados. Seu olhar resignado, muito mais do que melancólico, emoldurado por uma espessa sobrancelha preta, provoca tanto estranhamento no interlocutor quanto a sala na qual Monte concede a entrevista. Nos fundos do bar, ela abriga um sebo e uma videolocadora. Ali, ele vende livros usados, pôsteres e quadros antigos restaurados, além de alugar filmes. Embora não seja um bibliófilo, sabe escolher os autores clássicos e contemporâneos que mais vendem. Nas prateleiras, oferece títulos de escritores consagrados como Luís Fernando Veríssimo, Paulo Coelho, Martha Medeiros, Michel Houellebecq. Perguntado sobre suas preferências pessoais, cita os grandes da literatura latino-americana: Gabriel García Márquez, Mario Benedetti, Mario Vargas Llosa, "embora este tenha se bandeado para a direita", Augusto Roa Bastos, Alejo Carpentier. Jorge Luis Borges e Julio Cortázar nem tanto, por considerar uma leitura mais difícil, "entreverada".
Usando tênis, calça jeans e camiseta branca, com uma barba grisalha e cerrada feito de bandido de história em quadrinhos, Monte também aproveita para falar sobre cinema, lembrar-se das tardes gastas no Cineclube do Uruguai na década de 60, e sobre a situação política na América Latina hoje, a qual acompanha de longe, pelos jornais. Ao seu lado, a cadela Laura, uma vira-lata malhada cuja presença é anunciada por um cartaz - "Cuidado: Cachorros Soltos" -, concentra-se em um osso de rabada. "Ela foi deixada há alguns anos aqui. No início, pedi para um amigo de Canoas (município da Região Metropolitana de Porto Alegre) largá-la longe. Ele botou na caminhonete e soltou em Esteio (cidade a 17 quilômetros da capital gaúcha). Uns quinze dias depois, ela estava de volta. Apareceu de novo no bar. Hoje, até cumpre uma função de segurança, de noite. Garanto que tem uma vida muito mais feliz do que qualquer um aqui. É uma cachorra anarquista, libertária. Sai para a rua a hora que quer, volta quando quer", analisa.
Os livros, os filmes, os pôsteres e quadros espalhados aleatoriamente pelo bar, o gosto de Monte pela literatura, pelo cinema, pela política, e sua satisfação em falar sobre esses assuntos com qualquer um que busque no seu bar algo além de mais uma dose dão um inesperado ar cult ao ambiente tomado pelo cheiro de cigarros Dallas, Shelton, Derby ou Oscar's Blend. Se ficasse em um bairro boêmio da capital gaúcha, o Bar do Monte poderia atrair uma clientela como a do bar de seus enteados Federico e Diego, o Ossip, símbolo da boemia porto-alegrense. Tanto que já foi locação para dois filmes de produtoras gaúchas e, enquanto Monte concedia essa entrevista, outra profissional do cinema comparava os tons do seu bar com uma paleta de cores para preparar a filmagem de uma terceira montagem.
Monte gosta dessa função. Na fachada descascada de seu estabelecimento, a pintura anuncia: "Quadros, VHS Filmes, DVDs, Livros, Cigarros, CDs, Refris". Se pudesse, o bolicheiro ficava só com os quadros, filmes e livros. Mas nada disso lhe deu o dinheiro que esperava ("meus negócios são sempre um desastre", admite). Por isso, ele resiste. Atrás do balcão.
Por volta das 19h, há pelo menos outros cinco clientes alcoolizados no bar, além do homem da Catuaba Carinhoza. Às 21h30min, o dono, que não bebe, colocará na rua os remanescentes, para no dia seguinte acordar-se às 7h30min, tomar café-da-manhã, seus seis remédios para o coração, ler o jornal e reabrir o bolicho às 8h30min e servir a primeira dose de cachaça. "É muito estressante trabalhar com usuários de drogas. A droga aqui é a bebida. Não tenho paz nunca. Vou ser sincero. Não sei como me adaptei a isso. É prova de que o ser humano se adapta a qualquer coisa. É como quando eu, depois de três anos na prisão, quase me sentia em casa".
Reportagem: Sebastião Ribeiro / Cartola - Agência de Conteúdo
Uma produção exclusiva para Via Política.
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