terça-feira, outubro 23, 2007

Como a vida real anda deveras sem graça - aliás, como costumam ser as vidas reais, todas -, este blógui apela para a ficção.
 
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Por que, Teodora? - PARTE 1
 
Minhas lembranças mais antigas estão no estábulo. A mãe sentada em um banco invisível, tirando leite da vaca, eu criança à volta, brincando com o terneiro atado. Um dia gelado que do couro dos animais, do leite recém-tirado, do xixi dos animais, da minha boca, de tudo sai uma fumacinha. Até hoje, posso fechar os olhos e sentir o cheiro meio doce meio azedo que é de leite-bosta-mijo-pêlo-leite e que falando assim parece um nojo, mas na hora, e também agora, fecho os olhos, é tão bom...

Antes de encher os dois tarros, todo dia largados à beira da estrada e recolhidos pela caminhoneta da cooperativa, e ainda a panela de onde saía o leite do café-da-manhã, do café-da-tarde, do café-da-noite, a mãe me deixava ordenhar. No começo, eu forcejava tanto, mas não conseguia tirar mais do que um fino fio branco da vaca. Mais crescida, fui aprendendo. Minha mão recobrindo perfeitamente a teta menor, um pouco mais quentinha que meu corpo, os dedos em um ritmado sobe e desce, do fura-bolo ao mindinho, uma puxada seca final e então o jato espessos e estrondoso – shhhhhhhhhh! -no meu copo de vidro cheio de açúcar. E depois beber aquilo tudo, tanta espuma e um bigode branco para brincar.

A vida foi assim perfeita até aquele dia. Foi quando a mãe ficou doente pela primeira vez, eu com meus 12 anos. O pai me chamou de manhã cedo, ainda noite, e todo sério me disse filha mamãe hoje tá doente tu já tá grandinha vai tirar o leite hoje teu irmão te ajudar com o tarro e com o terneiro. E lá fui eu pro estábulo um pouco orgulhosa, um pouco nervosa. O Ivo já tinha embretado a vaca, atado o terneiro, era só fazer o que eu já fazia, só que desta vez um pouco mais. Bem mais. Lembro direitinho, me acomodei junto ao úbere com a solenidade de quem enfrenta pela primeira vez a responsabilidade. Tudo como sempre só que agora não um copo, mas um tarro e uma panela. Tudo diferente, então.

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