É um ritual que se impõe no início do veraneio. Despojado do chinelo, sai a caminhar. É preciso encascorar o pé. Estar preparado para qualquer eventualidade. De que natureza? Não pergunte. Também não sabe. Qualquer eventualidade, apenas.
Descalço, como uma tartaruga recém-nascida na Praia do Forte, entrega-se ao impulso que o leva em direção ao mar. No caminho, cem por cento do – volumoso, diga-se de passagem - corpo concentrados em 250 cm² de uma planta de pé.
Com o dedão, cava a areia que se deposita entre descombinados paralelepípedos e a lança ao ar. Sobre as pontiagudas pedrinhas de asfalto, enfim compreende o sadomasoquista: é sádico ao maltratar seus pés e masoquista ao gozar com a dor auto-infligida. Na grama indomada dos terrenos baldios, há se de pisar firme e fazer cara feia para amedrontar as rosetas. As raras calçadas bem cuidadas são oásis de alívio no caminho. Os pisos se sucedem de forma mais desafiadora do que os programas randômicos das esteiras de academia.
É preciso encascorar... É preciso sofrer até sentir a areia da praia acariciando o entrededos, a água gelada do mar anestesiando o corpo, de cima para baixo. Faz parte do ritual banhar-se olhando para a frente. Seguir caminhando como se em terra firme até ter o oceano na altura dos calcanhares, dos joelhos, do púbis, do umbigo, do peito. E só então mergulhar, parar e olhar firme para o fim do mundo, de costas para os espigões e para a praia que mais parece um campo de batalha com suas tropas, abaladas pela chuva, batendo em retirada e deixando para trás armas e mantimentos. Lixo, puro lixo.
Cada onda concentra em si a energia de um vento, de muitos ventos, se assim se pode dizer, que sopraram centenas de quilômetros à frente. Uma onda batendo forte no peito é a comunhão maior do homem com a natureza, assim como o pé descalço no asfalto o é com a obra humana. É preciso encascorar, para enxergar toda a beleza da imundície do homem.
Redimido com a natureza e com a obra humana, é hora de voltar, de fazer as pazes com com o homo sapiens sapiens. A ida já lhe deu o casco e a confiança necessários para caminhar sem olhar para o chão. Está pronto para enxergar seus pares. É bom ver-se de calção do Grêmio e cueca samba-canção, as banhas debruçando-se sobre o elástico na cintura, pelas ruas de Tramandaí. É reconfortante fazer parte da massa de homens obesos e suados por carregar seus isopores até há pouco repletos de latinhas de cerveja, ao lado de suas mulheres vermelhas sapecadas de sol, a pele sempre escorregando para fora do maiô. Ele vê aquela turma na varanda do condomínio de casas geminadas, dando risada com o CD do
Guri de Uruguaiana, o casal de Sapucaia namorando no carro ao som do
Musical JM, o negro corpulento de sunguete berrando bêbado por onze quadras que vai matar um brigadiano... e já não sente asco. Pelo contrário: encontra certa beleza e imagina-se parte de tudo isso. Acha que porque é gordo e porque usa calção de time de futebol e porque seu filho também tem um baldinho de areia em forma de peixe, pertence à grande massa, e isso lhe conforta. Está feliz porque não tem preconceitos.
O encascorar dos pés, o banho de mar, o conviver com os colegas humanos. No dia em que o mar o chama como às tartarugas da Praia do Forte, tudo isso faz parte. Só é preciso estar no Litoral Gaúcho. Fosse em Atlântida, ele rogozijar-se-ia por assintosamente desfilar seu calção tricolor entre o mar de bermudas coloridas com fecho de velcro e cordinha, daquelas que muito já usou - e ainda usa. Fosse em Torres, filosofaria sobre a relação entre o deterioramento de sua forma física e a decadência do bom gosto na praia: a cada quilo ganho, um espigão construído, uma suburbana à beira-mar, um cagalhão no mar dos Molhes... Ainda assim, lembrar-se-ia, tomado por uma dor gostosa, daqueles tempos em que todos eram belos - inclusive ele, embora só o tenha descoberto anos depois, olhando fotos antigas.
Tantas vezes encascorou os pés em Torres, Atlântida, Tramandaí... E sempre foi um ritual bonito, este. Que venham os dias de praia da temporada! A planta do pé está que é uma lixa. Agora, sim, está preparado para qualquer eventualidade.
***
PS1: Para sentir-se feliz fazendo parte da massa em Tramandaí, usar calção de futebol à beira-mar de Atlântida e horrorizar-se com a decadência de Torres, é preciso fingir que você paira sobre tudo e todos, que enxerga o mundo soberbamente de um patamar superior. É preciso fingir que você no fundo não faz parte de tudo isso. É preciso fingir que não tem preconceitos. Mas faz. Mas tem.
***
PS2: Borrifar veneno nas formigas proporciona sensação de poder.