segunda-feira, dezembro 16, 2013

Devagar se vai ao longe; mas já não se encontra ninguém

Olho para o lado e vejo um pouquinho dele em quase tudo de importante que construí. Minha família, minha casa, meu trabalho... Era meu psiquiatra há 17 anos. Morreu neste sábado, o Outeiral.

Tudo foi como tinha de ser. Em honorários, paguei uns 50 cavalos de polo ao longo da vida para ele, como costumava brincar. Ele me retribuiu ajudando a transformar aquele adolescente imaturo e cheio de medos em um homem, em um pai - tão orgulhoso como ele mesmo era.

Dezessete anos. Uns mil apertos de mão de oi. Outros mil de tchau. Assim deve ser entre médico e paciente. Nunca um abraço ou um beijo. E nunca fez falta. Só hoje.

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É como se eu soubesse a posição de cada livro nas prateleiras do consultório; de cada quadro e objeto. Mas, de todos, o meu preferido era este ursinho de madeira. Segundo consta, presente da filha, Júlia. Ano passado, fiz questão de fotografá-lo no divã. Em tempos, sem interpretações hoje, por favor.

"DEVAGAR SE VAI AO LONGE, MAS JÁ NÃO SE ENCONTRA NINGUÉM" (esta frase acompanhava o desenho de um homem sobre uma tartaruga; se não me engano, são do Millôr Fernandes, a frase e o desenho. Mas não tenho certeza...)


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* Texto publicado dia 21 de julho, após a morte do psicanalista José Outeiral, no meu Face. Mas confio mais no Blógui, pras coisas que quero guardar...


Um dia naquele verão...

O telefone tocou. Fixo. De disco. Decerto, nem tinha celular. Ou tinha e a gente não usava. Ou tinha e não pegava em Torres. Pra lá, a comunicação era no 664.
- Ahn?
- Sébi? Como é que tão as coisas?
- Ahn? Ah, bem... Bem... Hmmm...
- E a confusão?
- Oi? Que confusão?
- Não ouviu nada? O Português se matou. Matou a mulher. Aí na casa da frente. Todo mundo falando. Tá no rádio.
- Peraí.
A casa estava escura só os feixes da luz passando pela persiana, sempre fechada. Podia ser 8h, 9h, 10h...14h, 15h... Atravessei a sala, abri a porta, o sol cegou, fechei os olhos, abri, fechei, abri, fechei, a cachola latejando. Tinha polícia, IML, o escambau. O coração acelerou. Acordei. Voltei pro telefone.
- Diz que ele atirou nela e...blablabla
- Beijo. Vou ver.
Que jornalista de merda sou eu. Tiros na minha janela, quantos? Um, dois três, dez? E eu dormindo. Minha Pentax na mesa de cabeceira. Agarrei a câmera e saí correndo. Abri e porta, vi os polícias retirando o corpo. Parei. Dei um passo pra dentro de casa, atirei a câmera no sofá, fui até a cozinha, peguei um pão-de-minuto do Farol, saí, tranquei a porta, cruzei pelos curiosos aglomerados na calçada, atravessei a rua, adentrei a praia,como sempre, o sol agredindo a vista, como sempre, a areia queimando a sola, como sempre, a corrida até o mar, como sempre, e o mergulho na primeira onda, como sempre... Depois, vinte minutos de caminhada até os Molhes, a cachaça saindo pelos poros, a primeira cerveja na barraca do Fabiano, e então, de repente, como sempre, a cabeça já não mais dia, o esôfago já não mais ardia, a luz do sol já não machucava.

Guardo até hoje o negativo daquele verão. Contra a luz do abajur, revejo o tombo da Maria no luau de Itapeva, o finado Roberto descendo o escorregador da cachoeira de pé, um detalhe do paralelepípedo das ruas de Torres...  E só. E já era demais. Muito mais do que eu poderia imaginar.