domingo, fevereiro 15, 2015

Sei que era uma mansão, pelo espaço interno. Não posso dizer muito dela por fora. Vivia envolta pela cerração de Gramado, pelas araucárias e caneleiras. Mas isso não importa. A história vale pelos seus personagens. Jamais vou entender a relação entre eles. Era um Big Brother armado pelo destino. Todos ali para aproveitar a grande festa de Ibiza em pleno Festival de Cinema de Gramado de 2003. A atmosfera era de O Anjo Exterminador, filme do Buñuel: eu imaginava se repentinamente ficássemos presos ali, para sempre.
Mas vamos ao que interessa:

- Pintinho: um dos sujeitos mais boa-praça e generosos que conheci. No restaurante, fazia questão de pagar a conta da mesa inteira. Sempre com dinheiro vivo. Era de Caxias e tinha sotaque de gringo. Acho que morou na Itália um tempo. Trabalhava com máquinas de azar, num tempo em que não se sabia se isso era legal ou ilegal. Não duvido que fosse operador da loteria zoológica. Acaso se tornasse milionário, temo que não administraria bem a fortuna: gastaria tudo oferecendo os melhores jantares e as melhores viagens para os amigos. Era exímio cozinheiro. Chegou para o fim-de-semana numa caminhoneta tipo Pampa, caçamba aberta, tomada por tralhas de cozinheiro: panelas tipo wok, caçarola, de pressão, facas, um imenso queijo holandês, um fogão de campanha industrial. Preparou a melhor massa que já comi ever. Sonho com ela até hoje: espaguete na manteiga com molho e raspas de limão sciciliano. Al dente, perfeita, inesquecível.

- Tio Zeni: o mais velho da turma. Parece que já faleceu (sad...) À época, Tinha uns 40, 50 ou 60, não dava para precisar. Vivia acompanhado de um sobrinho de oito anos. Falava alto e desafinado. Tinha uma amável e proeminente pancinha e cabelos grisalhos pintados de dourado. Sotaque de gringo. Tão boa-praça quanto atabalhoado. Engraçado pacas. Na volta da festa, fumei um cigarrinho de artista com ele. Dentro do carro, pra não dar na cara do sobrinho.

Eu: solteiro. Idade: 24. Sabe-se lá por que aceitei curtir o fim-de-semana do Festival a convite de um casal de amigos, numa casa com um bando de desconhecidos. Andava em busca da paz. À procura do meu eu interior, sabe? Provavelemente era apenas reação a um trago monumental do fim-de-semana anterior. Ou, quem sabe, não. Fato é que prometi manter comportamento irrepreensível neste final de semana. A ponto de me tornar um coadjuvante naquela casa. Um mero espectador. Gosto de pensar que aquela jornada foi decisiva para que o casal de amigos decidisse me apresentar para a Rafa, irmã dele, cunhada dela. Afinal, não podia ser tudo mero acaso...

Os sócios:.eram bonitos. E fortes. Porte atlético, corpos moldados em academia. Muito parecidos, tinham sido sócios. E melhores amigos. Inseparáveis. Há um tempo, eram inimigos mortais. Alguma ronha na sociedade... A bronca tinha ido parar na justiça. Não se falavam há meses, anos. Eram adversários, rivais. Odiavam-se tanto quanto tinham se amado. A presença da dupla na mesma casa era motivo de tensão. Debaixo do mesmo teto, não trocavam olhares, muito menos palavras. Em determinado momento, nós, os homens, iniciamos um campeonato de sinuca: havia uma mesa profissional em um dos cantos da mansão - bem iluminada, jogo de bolas reluzente. Eram eliminatórias. Calhou que os dois se cruzaram na semi. Começa o jogo. Eles não se falam, cruzam olhares pelo reflexo das bolas. Lá pela pelota três, a tensão era tanta que nós, os demais, resolvemos deixar a volta da mesa. Os dois ficaram jogando. Caiu a primeira bola oito e começaram outra partida. E outra. E outra. E outra. E outra. E outra. Jogaram por horas a fio. Um adivinhava a jogada do outro. Mas não falavam. Juro: foi lindo! De longe, todo mundo se entreolhava: 'deixa eles, deixa eles...", dizíamos, baixinho. Espero do fundo do meu coração que depois daquilo tenham retomado a amizade.

Mariá: não foi à toa que a deixei por último. Era linda. Deslumbrante. De tirar o ar. Pele alva e cabelos negros, ondulados. Alta, magra, soberana. Mas dava para notar alguma fragilidade no olhar. Namorava um dos rapazes da casa. Era de Balneário. Não cansava de repetir isso. Me ensinou que quem é de Balneário, não diz Camboriú, nem Balneário Camboriú, mas diz Balneário. Tinha uma loja, lidava com moda. Vestia-se lindamente. Por volta das oito da noite do dia da festa, passou a ser o assunto da casa. É que tinha agarofobia. Ou agorafobia, não sei como diz. De qualquer modo: medo de multidões. E as festas da Ibiza eram um aperto, um povo, milhares de pessoas roçando ombros em um galpão. Davámos todos conselhos à Mariá, que não tivesse medo, que estaríamos junto, que na entrada faríamos uma espécie de cordão, o namorado dela a protegeria. Quando entramos na festa, a escoltamos. Depois, foi cada um pro seu canto. Ficamos sabendo que ela não aguentou o tranco. Voltou para casa às duas, e as quatro da matina pegou a estrada com o namorado com destino a Balneário. Temi pela vida dos dois. Mas sei que chegaram bem. Rezo todas as noites para que ela tenha melhorado da agorafobia. Ou agarofobia. Lembro dela toda santa vez que alguém diz que é de Camboriú ou de Balneário ou de Balneário Camboriú. Tenho verdadeiro carinho por todos que participaram daquele final de semana.

Julius Rigotto: devia estar em algum lugar VIP da Ibiza. Qualquer problema, era para falar com ele, nos orientaram os caxienses da casa. Não foi preciso. Mas não poderia deixar de citá-lo em uma história tão surreal.

* Obs.: essa história é baseada em fatos e pessoas reais. Baseada. Na verdade, é absolutamente fiel à minha memória. O que não quer dizer em absoluto que seja um relato fiel do que rolou. Pelo contrário: tenha certeza que minha mente modificou quase tudo ao longo desses 11 anos que nos separam desse final de semana.


De pandorgas e livramentos

Foi em agosto do ano passado. Fui levar o Emiliano em casa, conhecer o filho dele e da Amarílis, o bebê Miguel. Estava lá o pai dele, o Carlos Urbim, que faleceu hoje. Tinha passado por uma cirurgia, via-se muito magro e um tanto frágil. A morada da Av. América abrigava uma singela festa. Uns amigos mais chegados tinha ido comemorar o mesversário do novo integrante da família. Havia bolos, balões e uma serena alegria no ar.
Em determinado momento, o Urbim sentou-se no sofá e começou a contar uma história. Era uma história de pandorgas e de Livramento, de ruas e de 'gurizes'. Aquela fala arrastada e desafinada, como um eterno adolescente mudando a voz, começou a ganhar corpo. Cada vez mais alta e acompanhada por um olhar reluzente, contrastava com o corpo ainda adoentado. Dejá Vu. Voltei 25 anos. Estamos na sala das Alfas do Colégio de Aplicação. O autor de Um Guri Daltônico estava ali para contar umas estórias. Nosso encantamento de estar cara a cara com um escritor de verdade era tão grande quanto o estranhamento de saber que um escritor de verdade podia ter uma voz de mentira.
Sabe sobre o que o Urbim falava para aquela piazada de 10 anos? De pandorgas e de Livramento. Agora, sentado na poltrona da casa dele, eu não podia crer que contava exatamente a mesma história que eu ouvira no final dos anos 80. Que aquilo, lá atrás, não era uma palestra ou uma apresentação pensada para crianças. Era simplesmente o Urbim sendo o Urbim. E ainda assim, não conseguia deixar de pensar: quantas vezes o Emiliano deve ter ouvido essa história da pandorga? Tinha certeza que aquilo que me encantava devia irritá-lo: qual filho não se enche com os papos do próprio pai?
Um Guri Daltônico marcou minha infância. Junto com o Livro dos Porquês e Flicts, do Ziraldo (que fixação em cores!). Acho que era tão bom, porque, mesmo adulto, o autor parecia ainda ver o mundo como um menino. E assim foi nas pouquíssimas, mas sempre marcantes situações que o vi. Até mesmo no churrasco da nossa turma de formandos do Jornalismo, do qual o Urbim era paraninfo. Discutíamos a morte do Tim Lopes. Até que uma colega começou a argumentar que 'mas a Globo também teve culpa, porque blablabla'. Ao ouvir justificativas para a morte de um colega, o paraninfo sentenciou.
- Então te fode!
Instaurou-se um silêncio, seguido por gargalhadas. Era o que (quase) todo mundo ali queria dizer. A vida inteira interpretei isso como a sentença final, a voz da sabedoria pondo fim ao debate. Se o Urbim disse, então está dito. Amém. Hoje, no dia em que ele se foi, me dei conta do seguinte: não era um sábio, um Deus, um ídolo, nem mesmo o paraninfo, proferindo a sentença final - e que humana sentença! Era apenas um adolescente mudando a voz, dizendo simplesmente o que tinha vontade.

Um beijo grande pra toda família Urbim: Emiliano, Alice, Glauco.