De pandorgas e livramentos
Foi em agosto do ano passado. Fui levar o Emiliano em casa, conhecer o filho dele e da Amarílis, o bebê Miguel. Estava lá o pai dele, o Carlos Urbim, que faleceu hoje. Tinha passado por uma cirurgia, via-se muito magro e um tanto frágil. A morada da Av. América abrigava uma singela festa. Uns amigos mais chegados tinha ido comemorar o mesversário do novo integrante da família. Havia bolos, balões e uma serena alegria no ar.
Em determinado momento, o Urbim sentou-se no sofá e começou a contar uma história. Era uma história de pandorgas e de Livramento, de ruas e de 'gurizes'. Aquela fala arrastada e desafinada, como um eterno adolescente mudando a voz, começou a ganhar corpo. Cada vez mais alta e acompanhada por um olhar reluzente, contrastava com o corpo ainda adoentado. Dejá Vu. Voltei 25 anos. Estamos na sala das Alfas do Colégio de Aplicação. O autor de Um Guri Daltônico estava ali para contar umas estórias. Nosso encantamento de estar cara a cara com um escritor de verdade era tão grande quanto o estranhamento de saber que um escritor de verdade podia ter uma voz de mentira.
Sabe sobre o que o Urbim falava para aquela piazada de 10 anos? De pandorgas e de Livramento. Agora, sentado na poltrona da casa dele, eu não podia crer que contava exatamente a mesma história que eu ouvira no final dos anos 80. Que aquilo, lá atrás, não era uma palestra ou uma apresentação pensada para crianças. Era simplesmente o Urbim sendo o Urbim. E ainda assim, não conseguia deixar de pensar: quantas vezes o Emiliano deve ter ouvido essa história da pandorga? Tinha certeza que aquilo que me encantava devia irritá-lo: qual filho não se enche com os papos do próprio pai?
Um Guri Daltônico marcou minha infância. Junto com o Livro dos Porquês e Flicts, do Ziraldo (que fixação em cores!). Acho que era tão bom, porque, mesmo adulto, o autor parecia ainda ver o mundo como um menino. E assim foi nas pouquíssimas, mas sempre marcantes situações que o vi. Até mesmo no churrasco da nossa turma de formandos do Jornalismo, do qual o Urbim era paraninfo. Discutíamos a morte do Tim Lopes. Até que uma colega começou a argumentar que 'mas a Globo também teve culpa, porque blablabla'. Ao ouvir justificativas para a morte de um colega, o paraninfo sentenciou.
- Então te fode!
Instaurou-se um silêncio, seguido por gargalhadas. Era o que (quase) todo mundo ali queria dizer. A vida inteira interpretei isso como a sentença final, a voz da sabedoria pondo fim ao debate. Se o Urbim disse, então está dito. Amém. Hoje, no dia em que ele se foi, me dei conta do seguinte: não era um sábio, um Deus, um ídolo, nem mesmo o paraninfo, proferindo a sentença final - e que humana sentença! Era apenas um adolescente mudando a voz, dizendo simplesmente o que tinha vontade.
Um beijo grande pra toda família Urbim: Emiliano, Alice, Glauco.
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