segunda-feira, janeiro 10, 2022

O Circo Por Trás da Lona

Um dos meu trabalhos nos primeiros anos da Cartola . Que saudade!!!

Por onde andam Pitoco e Verica?

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O CIRCO POR TRÁS DA LONA II

Por Sebastião Ribeiro

Às 20h05, ele deixa o trailer azul de apenas 10 metros quadrados onde mora com a esposa, os dois filhos e às vezes a sogra. Carrega nas mãos um saco de carvão, álcool, jornal, fósforo, um prato de plástico. Vestindo bermuda, camisa polo e chinelo, do pescoço para baixo é o argentino Juan Carlos Foppoli - ou apenas Juanca –, o pacato marido de Verica e pai de Juanes (um ano) e Juanita (quatro). O rosto, todo pintado, já é de Pitoco, o atabalhoado palhaço que apresentará quatro números no espetáculo das 21h do Circo Español, em turnê por Porto Alegre (RS).
Antes disso, porém, tem de assar o churrasquinho vendido na entrada do público e no intervalo. Enquanto o palhaço apanha para fazer o fogo, a esposa, Veridiana Lima, ou apenas Verica, chega com uma bandeja cheia de espetinhos de carne de gado, linguiça e frango. O tempo está úmido, e o carvão não quer saber de incendiar. Com o prato, o palhaço abana sem parar. Com as mãos, tenta dar uma nova configuração geométrica ao combustível, na esperança de acelerar o processo. Faz apenas três dias que assumiu o churrasquinho. Falta-lhe prática.
- Mira que porqueria! – queixa-se a Verica, em espanhol, apontando para o carvão.
- Tu vais queimar teus dedos!
Aos poucos, no entanto, as pedras abandonam a coloração preta e assumem a vermelha. O palhaço está aliviado. Com o prato que já foi abanador e receberá a farinha, faz malabarismos. A seguir, caminha até o camarim de lona improvisado junto ao trailer. Volta 100% Pitoco, vestindo um macacão xadrez e uma boina azul. Verica também está preparada para a breve aparição como bailarina, a maquiagem desenhando uma máscara nos olhos.
Os dois formam um casal peculiar. Aos 21 anos, ela mede 1,72m e tem pouco mais de 50 quilos. Aos 29, ele tem 1,62m e pesa ao redor de 100 quilos. Começaram a namorar quando ela tinha 15. Em um circo, é claro. Pitoco vive no picadeiro desde que nasceu, em Mendoza, na Argentina. Verica, brasileira, fora morar com a irmã, bailarina, colega de espetáculo do palhaço. A temporada era numa cidade gaúcha na fronteira com a Argentina ou Uruguai, nem eles lembram qual – Alegrete, Uruguaiana, Santana do Livramento. O fato é que Juanca convidou Verica para sair, os dois foram a uma boate e um ano depois juntaram os trapos, passaram a dividir o mesmo e itinerante lar.
Enquanto o palhaço segue no comando dos espetos (agora a batalha é para não torrar a carne), a tenda onde o público é recepcionado ganha cores e movimento. No trailer do bar, tem pirulito, bala, pipoca, cachorro-quente, refrigerante, além de um Homem Aranha inflável, tiaras adornadas com borboletas e outros brinquedos. Atrás da máquina de crepe e do algodão-doce, a nora do dono do circo maquia uma bailarina. As outras enchem caixas com refrigerante e pipoca para logo mais vender na plateia, junto com o churrasquinho, a maçã caramelada, as pulseiras fosforescentes. Tudo é feito para as crianças. Menos a música que abre o sistema de som. Um hit do sertanejo moderno: "Mas pega fogo cabaré/ Hoje eu não arredo o pé/ Pode vir que eu tou no ponto/ Só filé... só filé".
Na porta, uma fila de crianças e pais dobra a esquina. Uma atrás da outra, 120 pessoas parecem muito. Dispersas entre as mil cadeiras acomodadas debaixo da lona, pouco. Quando a entrada é liberada, às 20h47min, Pitoco está a postos junto a uma mesa de bar. Atrás dele, o cartaz anuncia: "PINTE A CARA DE PALHACINHO GRÁTIS na compra do nariz por R$ 1,99". Uma mãe protesta: "é propaganda enganosa!". Muitas acham caro. Uma quer saber se a tinta sai com água. Algumas nem cogitam em dizer não ao apelo dos filhos. Outra opta por apelar.
- Não quer pintar a cara de palhaço, meu filho?
O guri, aparentando cinco anos, apenas observa Pitoco. Com desconfiança.
- Ah, vai, meu filho... Olha que bonitinhas as outras crianças. Pinta!
Assustado, o garoto abana a cabeça. Não. Ele prefere pipoca e refri.
Caras pintadas, narizinhos de palhaço vendidos, Pitoco se volta para o churrasquinho. Afinal, o dinheiro da venda vai todo para ele, fazendo a renda mensal ficar um pouco acima de R$ 2 mil. Na churrasqueira, entretanto, os problemas continuam. Agora, um fogaréu lambe a carne, os espetos estão em chamas. Dois deles já caíram sobre o carvão. Definitivamente, falta experiência ao palhaço. Para amainar o fogo, Pitoco taca o molho de alho sobre a labareda. Em vez de apagar, o composto alimenta a combustão. Parece palhaçada. Mas é trapalhada mesmo. Nada que não se resolva afastando a carne do carvão.
São quase 21h30min e, no picadeiro, o espetáculo começa. O palhaço deixa a função do churrasco, troca roupa no trailer e se prepara para o primeiro número. Sob os holofotes, vestindo boina azul, colete vermelho, calças largas e sapatos gigantes, Pitoco movimenta-se espalhafatosamente e apita sem parar. Chama quatro voluntários. Senta-os em banquinhos, deita a cabeça de um no colo de outro formando um quadrado, começa a retirar os banquinhos até deixar a formação sem apoio, mas ainda sustentável. O gran finale é atirar um lenço sobre os quatro, fazendo tudo desmoronar. Os voluntários caem de bunda no chão. Gargalhadas. Aplausos. Sim, tem um truque, mas nós não vamos tirar a graça, não é?
O número solo, o artista teve de tirar da cartola há cerca de três meses, quando perdeu sua dupla de palhaçadas: Petaco, seu pai. Anão, natural de Mendoza, aos nove anos ele foi vender frutas no circo e fez amizade com os artistas. O pessoal do espetáculo convidou o pequeno para viajar uma semana com a trupe. A viagem durou a vida toda. Até 2009, quando aos 57 anos um derrame foi fatal. Pitoco perdeu o pai, o amigo, a dupla, aquele que desde criança o pintava de palhaço e aos seis anos o colocou no picadeiro. "Meu pai foi enterrado às onze da manhã. Às oito e meia da noite do mesmo dia eu entrei no picadeiro sozinho. Quando as cortinas se abriram, esqueci de tudo. Fiz tudo certinho, como tinha de fazer. Aprendi com ele mesmo que tem de ser assim", lembra. Logo após, conta que a mãe, antes bailarina de circo, hoje mora na Argentina, perto das quatro filhas, das quais uma também é artista.
Durante a apresentação, Pitoco não tem muito tempo para pensar mesmo. Ele sai do primeiro número, dá uma espiada no churrasquinho, troca de roupa no trailer, volta ao picadeiro como um pintor gozador, sai de cena, pega a mala com o material de malabarista, corre esbaforido por trás da cortina até o lado do picadeiro, dá um pito num funcionário que pita em pleno espetáculo, segura com outros três homens a corda que mantém a trapezista Veronica no ar, entra no picadeiro quando ela sai, emenda um número de malabarismo com bolas de jogar bocha, uma delas bate na sua cabeça, ele sai com um galo (o hematoma, não o animal) de plástico no coco, arranca risadas da plateia, corre até a entrada e assume a churrasqueira para o ponto alto das vendas: o intervalo.
O movimento é pequeno. Mesmo assim, uns 30 espetinhos encontram saída na noite. Enquanto compram, as crianças aproveitam para conversar com o palhaço vendedor. Dois garotos, vestindo camisetas com motivos de surf e boné, naquela fase meio criança, meio adolescente, perguntam sobre o número no qual o artista Fabricio Gadea move-se como um boneco.
- Aquele manequim era uma pessoa ou um boneco? - pergunta um dos guris.
- Uma pessoa que faz trabalho de boneco – responde, sorridente, Pitoco (ou seria Juan Carlos?), com a mesma fala tranquila de sempre.
- Depois, tu nos chama para o palco?
- Onde vocês estão sentados?
- Ali em cima para a direita.
- Então tá.
Minutos depois, os dois estariam no picadeiro,  posando para fotos de um palhaço que não consegue se decidir pelo melhor ângulo ou o melhor enquadramento. É o último número de Pitoco na noite.
Na saída, atrás das cortinas, sobra agora tempo para falar com o ginasta. O colega conta que uma das bailarinas está se formando em educação física e convida todos para uma festa depois do espetáculo. Antes disso, porém, a trupe inteira tem de voltar ao picadeiro para receber os aplausos.
Dever cumprido, apresentação encerrada, Pitoco ruma para a frente do trailer. Logo atrás, vem Verica, pernas de fora, barriga de fora, roupa de bailarina, crivada de lantejoulas, correndo feito uma criança.
- Juanca! Vamos numa festa?
- Pois é... Quanto é?
- R$ 6 com a pulseirinha que ela vai dar.
- E como vamos voltar?
- Tem ônibus às 4h.
- E tua mãe fica com as crianças?
- A-han.
Meia hora depois, o casal sairia de carona para a primeira noitada em quatro anos – desde o nascimento de Juanita. Quando me apresentei ao casal, no fim da tarde, a menina postou-se na porta, curiosa. Sem que eu perguntasse, foi logo dizendo.
- Eu também vou trabalhar no circo!!!
- É mesmo? Com o quê? - quis saber.
- Bambolê. Eu já faço, sabia?


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Sobre:
Pitoco é um dos personagens do ensaio sobre os bastidores do Circo Español, do fotógrafo Daniel Marenco, que faturou o 7º Concurso Cultural Leica Fotografe Melhor (circa 2012). O texto acima e o vídeo foram ao ar no portal Via Política.

https://youtu.be/29KYm0NRYt0

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