sexta-feira, junho 10, 2022


Matico, segue texto do Winni. Fica à vontade para melhorá-lo inclusive com fatos que conheça sobre ela e que julgues interessante acrescentar. Abço




As aventuras e desventuras de Winni

(Viaje com a brasileira de 23 anos que caminhou 200km no Saara e explorou sozinha a África árabe)

 

Em 45 dias de viagem pelo norte da África e Oriente Médio, Winni Rio Apa contabilizou 200 quilômetros de caminhada no deserto do Saara, um assalto sofrido e cinco detenções policiais. A última parte foi o preço que pagou por ter acreditado que a fraternidade e a liberdade eram valores universais.

Turismóloga, guia de expedições para a cordilheiras dos Andes na Argentina, aventureira por profissão e por paixão, essa curitibana de 23 anos, radicada em Florianópolis, começou a delinear sua última viagem no verão de 2009. Era um final de tarde na Lagoa da Conceição e ela admirava o pôr-do-sol em um trapiche com amigos. Ali, foi apresentada a Toco Lenzi, guia de viagens para o deserto, que relatou seu projeto de atravessar o Saara caminhando em oito anos, ao longo de diferentes expedições. "Na hora fiquei com aquilo na cabeça. Imagina.... Partir do nada e chegar a lugar nenhum!", lembra Winni. Desanimador? Para ela, desafiador. Somente a ideia da caminhada já lhe deixou tentada, mas uma coincidência nas conversas iniciais ajudou-a a se aproximar ainda mais do guia.

- Seu sobrenome é Rio Apa? O que você é do Thor Rio Apa - perguntou Lenzi.

- Sobrinha. Por quê?

- Há uns quinze anos eu estava na praia do Cassino (RS), filmando uma competição de carro a vela, e achei uma garrafa na praia. Dentro tinha uma poesia do Thor. Por um tempo me correspondi com ele.

Até hoje, Lenzi guarda a garrafa. Winni nunca foi vê-la. Mas iniciou imediatamente seu projeto 200Km no Saara 2010. Durante todo o ano passado, trabalhou como nunca. Deu duro como garçonete em dois restaurantes da Ilha. Ajudava em uma companhia de alpinismo industrial, a D-Edge, "na parte administrativa, mas quando precisava, me pendurava também nos prédios, para limpar vidros, essas coisas". Ainda obteve apoio com a Mountain Brasil, empresa que forneceu equipamentos para a ida ao Saara, e de um amigo designer que a ajudou com a logomarca de seu projeto, depois estampada em 110 camisetas. Elas foram vendidas em um kit contendo um CD de músicas da África Árabe e um cartão postal cuja imagem era a montagem de uma foto na qual Winni aparece no meio do deserto. Somente essa ação lhe rendeu R$ 3.300. Ao final do ano, ela já tinha os US$ 4,8 mil necessários para passar duas semanas no Saara e mais um mês viajando sozinha pela Mauritânia, Tunísia, Egito - embora a passagem esteja ainda "pagando em 10 mil vezes", como diz.

A primeira coisa que Winni descobriu ao chegar ao Saara, em 30 de janeiro deste ano, foi que o deserto não levava "do nada a lugar nenhum". Ou melhor: que o deserto não um só deserto, mas muitos, uma paisagem variada, com arbustos, pedras coloridas, cascalho, dunas, pequenas montanhas; pequenas cidades e aldeias aqui e acolá; nômades e comerciantes que aparecem e que se vão; uma cor diferente para o nascer e outra o pôr-do-sol. Acompanharam-na nessas descobertas um grupo de oito brasileiros, entre eles Lenzi, 12 dromedários para carregar as coisas e seis guias beduínos.

O dia dos caminhantes começava por volta das 6h30min da manhã, quando acordavam e iam tomar café na tenda árabe montada pelos guias locais: um pão de areia (assado sob a areia com brasa por cima), geléia, leite em pó porque de cabra todo dia enjoaria, café, chá e os inseparáveis queijinhos La Vache que Rie, companheiros de todas as horas na viagem. Às 8h, o grupo partia em caminhada, e, apesar de um lanchinho com queijo durante a manhã, só parava mesmo às 13h30min, quando os beduínos remontavam as tendas e o grupo almoçava: atum com batata e um suco Tang de sabor variável. A seguir, hora de fazer nada. Deitar, rolar, abanar as moscas, espanar a areia grudada no suor do corpo, tentar fazer o tempo e o calor de 40 graus à sombra e mais de 50 graus ao sol passarem. Para então, ao fim de tarde, aproveitarem os matizes do cair do sol sob a névoa de areia e aguardarem o frio da noite. O jantar era com carne de cabra seca, cenoura, batata, tomate e cuscuz ou macarrão. Montar as barracas era a parte mais fácil do dia. "É uma barraca especial (tipo quéchua). Como se fosse uma pizza gigante que você joga no chão e em dois minutos ela se arma sozinha. Difícil era transformar aquilo em pizza de novo", conta a viajante.

Mas nem tudo era tão fácil como a barraca quéchua. Passar sete dias só com banho de paninho úmido, fazer do ar livre o seu banheiro foi o de menos para Winni. O terror da caminhante foram as bolhas nos pés. Levar as botas de caminhar na neve dos Andes Argentino para caminhar na areia do Saara definitivamente não foi uma boa ideia. No oitavo dia, apesar da faixa enrolada todo dia, seu pé estava em frangalhos, e ela teve de se socorrer do dromedário. A solução na jornada seguinte foi improvisada, mas funcionou. "No nono dia, apelei para o tênis número 43 emprestado por um colega. Ficou grande no meu pezinho 38, mas aí consegui caminhar", diverte-se.

Durante a expedição, Winni manteve a cabeça coberta com panos, para manter a umidade do corpo e seguir a tradição local para as mulheres. "Coberta, me sentia muito mais charmosa, bonita, as pessoas me olhavam com respeito", revela (impossível ouvir essa descrição, olhar para íris esverdeada de Winni e não lembrar da célebre foto da garota afegã de olhos ainda mais verdes eternizada pelo fotógrafo Steve McCurry, na capa de uma National Geographic). Do contato com os guias beduínos, com nômades que levavam, literalmente, a casa sobre camelos e com os moradores das aldeias pelas quais passou, a jovem aventureira afirma só ter trazido boas lembranças. "O deserto é maravilhoso, foi um dos lugares que me senti mais segura em minha vida. Aquelas pessoas... Eles têm uma cultura de compartilhar experiências. Em muitos lugares me ofereciam leite de cabra em uma bacia, às vezes já estava verde a bacia (ri), mas era importante para eles aquela troca, beber do mesmo leite. E também tem o ritual da roda de chá. O chá para eles é como o relacionamento das pessoas. Costumam dizer que na primeira rodada do chá, ele está amargo como a vida. Na segunda, doce como o amor. E, na terceira, suave como a morte", conta Winni.

Supostamente a parte mais dura de toda a viagem, a experiência no Saara, entre Atar e Oásis de Terjit, na Mauritânia, foi a mais tranquila para a viajante. Complicada foi a sequência seguinte: os 30 dias como backpecker solitária na África Árabe, em cidades da Mauritânia, Tunísia e Egito. A beleza das pirâmides egípcias, a mística do nascer do sol no Monte Sinai, para Winni, a julgar pelo tempo que dedica a cada relato, tudo isso parece menos importante do que suas desventuras urbanas. Hoje ela conta com divertimento o que passou. A começar pelo assalto que sofreu na Tunísia, quando, depois de fazer amizade com dois locais, foi roubada por eles, ficando com menos 150 euros de um dinheirinho que já estava contado. Ao fugir de trem, os assaltantes ainda esfregaram as notas na janela da composição e deram tchauzinho para a brasileira. Sem grana para pagar albergue, a bela Winni, que hoje conta essa história vestindo um elegante casaquinho roxo em um charmoso café de Porto Alegre, teve de dormir no meio da calçada. Acordou com a própria boina, despropositadamente deixada ao chão, recheada com três moedas. Misericórdia com uma mendiga. Que pagou o pão do café da manhã. Não bastasse isso, na Tunísia ela teve seu primeiro problema com a polícia. Parada na rua, não pôde apresentar o passaporte que deixara na embaixada do Egito para pegar o visto. Quase foi presa, mas uma ligação para os diplomatas egípcios convenceu os policiais.

Até quando tudo dava certo, havia uma certa tensão no ar na programação de Winni. Como quando foi convidada com uma amiga backpecker que conheceu na viagem para uma festa de casamento no Egito. Só esqueceram de dizer que era no dia dedicado ao noivo (os casamentos na região são realizados em três dias: o primeiro para o noivo, o segundo para a noiva e o terceiro para a família dos dois). Resultado: as duas turistas eram as únicas mulheres em uma festa para 300 homens no meio da rua, regada a muito chá, pipoca e açúcar caramelado. "Todo mundo queria tocar na gente, crianças, todo mundo! A gente era atração turística. Ficavam todos os convidados sentados no chão e nós duas numa cadeira". O grand finale foi quando elas foram convidadas - ou melhor, convocadas - a dançar. Apesar de serem as únicas mulheres do arrasta-pé, tudo ocorreu no maior respeito.

 Como se pode ver, Winni gosta mesmo do inusitado, do diferente. E uma amiga japonesa que encontrou na viagem também. Tanto que quando receberam o convite de um beduíno para visitar uma aldeia no meio de um mangue no interior do Egito, a oriental não teve dúvidas. Estudiosa desse tipo de ecossistema, foi a primeira a dizer: vamos lá! Ainda que para chegar ao local tivessem de pegar um ônibus, descer na estrada, no meio do nada, e caminhar 7 quilômetros até o mangue. Foi o que as duas fizeram. Só não contaram com a polícia, que lá, no meio do nada, abordou-as. De um lado as turistas argumentavam em inglês que tinham o direito de ir e vir e de conhecer o mangue. De outro os policiais respondiam, em mímica, que elas não podiam, que era perigoso, que iam ser mordidas por cachorros, que virariam escravas sexuais. E assim se estendeu das 17h até às 23h uma confusão que terminou com Winni e a japonesa em uma cela de cadeia. Pelo menos a cela era melhor do que muitos lugares que Winni havia dormido e quando chegou 1h da manhã o delegado precisava ir embora e mandou soltar as meninas.

Mas os problemas de Winni com a lei estavam recém começando. Ela ainda teria de enfrentar três detenções em Israel, onde só entrou para pegar um vôo mais barato até Paris, de onde retornaria ao Brasil. Alheia aos meandros da política e dos conflitos na África e no Oriente Médio, foi detida por três vezes pela imigração israelense por ter o passaporte carimbado por países árabes com os quais o estado judeu tem um histórico de conflitos. A primeira vez na divisa terrestre, em Eilat, junto à Faixa de Gaza, fronteira com o Egito. A segunda no aeroporto de Eilat. E a terceira no aeroporto de Tel Aviv. Em todas elas, foi interrogada: o que você foi fazer na Tunísia? Você sabe que a Al Qaeda está na Mauritânia? Que terroristas você conheceu na viagem? O que eles lhe deram para trazer? O que você vai explodir aqui? Acreditamos que você faz parte de um grupo de terroristas! As perguntas (e acusações) eram sempre as mesmas, se repetiam até extenuar a viajante. Por diversas vezes, Winni teve de ficar de calcinha, passar por detectores de metais, viu revirada sua mala. De suas coisas, finalmente acharam a bomba. E a viajante foi confrontada com a matéria-prima do artefato: um saco de areia que trouxera do Saara, fios da máquina fotográfica, pilhas da lanterna, uma pinça, uma lixa. "Rapaz, eu nem sabia que dava para fazer bomba com aquilo", ri ela hoje.

Ao fim, Winni foi liberada. Mas teve de deixar a "bomba". Tudo bem, disse, mas o saco de areia eu levo.

- Por quê? - perguntou o policial.

- Porque é importante para mim - e já foi pegando a lembrança.

Depois de ter até mesmo viajado algemada em um voo entre Eilat e Tel Aviv, Winni finalmente chegou a Paris e então ao Brasil. Com o seu saco de areia do deserto intacto, souvenir maior da viagem. Para muitos, a insistência em contestar a polícia egípcia, de querer visitar um vilarejo ermo no meio do mangue, a ousadia de pedir o saquinho de areia aos israelenses, tudo isso pode ser ingenuidade juvenil. Para Winni, não passa de aventura.

Filha de um advogado com uma artesãa, ao ser questionada sobre a origem de seu espírito aventureiro, Winni recorre aos tempos de infância quando vivia fraturada por explorar o pátio do vizinho e obras inacabadas na cidade. E à adolescência, quando viveu na praia da Pinheira (SC), com o avô, Wilson do Rio Apa (confira perfil na VPTV), marujo destemido, "Terror dos Mares", como ela recorda, e um homem que aos 85 anos ainda acredita na liberdade acima de tudo. À luz da história do avô, fica fácil entender a neta aventureira.

 

Texto originalmente publicado em 2010 para o site Via Política.

Por Sebastião Ribeiro

A prisão fica atrás do balcão

Olhos no nada, boca sem dentes, fala embaralhada pelo andar de bar em bar, o homem aproxima-se do balcão. Do outro lado, o bolicheiro Monte, 65 anos, pergunta, apenas para precipitar uma resposta que nunca muda.

- Que quieres?

- Rá! Que pergunta! - provoca o cliente, alguns tons além do esperado para o ambiente.

Como quem ouvisse uma resposta clara, Monte serve o de sempre. Em um copo curto de cachaça, mistura quatro partes de aguardente e uma de "Catuaba Carinhoza", um "coquetel de vinho tinto suco de maçã xarope de maçã fermentado de maçã e catuaba" - assim mesmo, como no rótulo, sem virgulas e com um Z no lugar de um S.


Cinco de janeiro de 1976. É véspera do Dia de Reis, quando os uruguaios trocam presentes, em um ritual que na cultura brasileira ocorre na véspera de Natal. Nascido com o pomposo nome de Herbert Vicente Montenegro Felipe e transformado pela vida simplesmente em Monte, o então fotógrafo e artesão assava uma carne na grelha em companhia do sogro, Armando, e dos dois enteados, os quais chama de filhos, Diego e Federico, então com cinco e seis anos, respectivamente. Na casa em Pocitos, bairro nobre de Montevidéu, esperava com a família a chegada da mulher, Libertad, atrasada por causa do tradicional serão do comércio na data.


Mas quem chegou primeiro foram os militares. Pouco antes da meia-noite, bateram à sua porta, anunciaram a prisão e confiscaram suas fotos, câmera, equipamentos, embora Monte relate que só fazia imagens de eventos sociais – festas, casamentos, aniversários. Os quatro anos seguintes o uruguaio passou na cadeia. 


Trinta e três anos, nove meses e oito dias separam o episódio da prisão do prosaico pedido do drinque de Catuaba Carinhoza no bar localizado no bairro Azenha, em Porto Alegre (RS). Mas, de alguma forma, a prisão está ligada à rotina atrás do balcão que o destino reservou a Monte. Não fosse a ditadura que perdurou de 1973 a 1985 no país vizinho, é provável que o bolicheiro levasse outra vida. No início dos anos 1970, ele estudava na Escola de Belas Artes de Montevidéu. Mas nunca concluiu o curso. Antes disso, a faculdade, núcleo do movimento estudantil, foi fechada pela repressão da ditadura. "Entrei de gaiato nesta de bolicho. Foi meu sogro que inventou esta história de bar, lancheria. Mas agora é tarde para mudar. Não terminei nada", resigna-se, em espanhol, atrás de uma empoeirada máquina registradora analógica, fora de uso há anos, que alguém parece ter esquecido de tirar do balcão.


A chegada da família a Porto Alegre foi em 1982, quando Monte ainda se sentia reprimido no Uruguai por ter de se apresentar à Justiça regularmente. Vieram a convite de Armando, falecido em 1990, pai de Libertad, fruto de romance com uma uruguaia. Pouco depois, nasceu o primeiro filho do bolicheiro com a esposa, Maurício, hoje com 24 anos. Desde a chegada ao Brasil, o Bar do Monte sobrevive no mesmo e antigo casarão de esquina, construído na década de 20, ele informa; um lugar onde o tempo passa na velocidade em que os cupins corroem a madeira do balcão. Va-ga-ro-sa-men-te... Cada dia é igual ao outro. Da abertura, pela manhã, ao fechamento, à noite, sucedem-se os mesmos personagens de ontem e de anteontem. A maioria alcoolistas que percorrem um circuito nos botecos da região. Cada um com sua esquete. Tem o que discursa, o que passa horas quieto escorado no mesmo canto, o que fuma sem parar enquanto tem a boca carcomida pelo câncer.


Monte prefere afastar-se da clientela para contar esta história. Militante da União da Juventude Comunista Uruguaia na década de 1970, ele lembra ter sido preso brevemente pela ditadura outras vezes antes de 1976, por atitudes subversivas. Mas relata nunca ter aderido à luta armada; suas atividades políticas resumiriam-se a protestos, reuniões, pichações. O suficiente para levá-lo à prisão naquela véspera de Dia de Reis. Nos primeiros seis meses de cárcere, Monte conta ter ficado incomunicável, encapuzado boa parte do tempo, muitas vezes de pés atados.


Ele não consegue – ou não quer – lembrar com detalhes esses tempos. Prefere o relato genérico a outro mais pessoal. Mesmo quando confrontado com perguntas diretas, esquiva-se. Impossível não arriscar dizer que as minúcias pungentes estão escondidas em seus olhos sempre baços e pesados. Seu olhar resignado, muito mais do que melancólico, emoldurado por uma espessa sobrancelha preta, provoca tanto estranhamento no interlocutor quanto a sala na qual Monte concede a entrevista. Nos fundos do bar, ela abriga um sebo e uma videolocadora. Ali, ele vende livros usados, pôsteres e quadros antigos restaurados, além de alugar filmes. Embora não seja um bibliófilo, sabe escolher os autores clássicos e contemporâneos que mais vendem. Nas prateleiras, oferece títulos de escritores consagrados como Luís Fernando Veríssimo, Paulo Coelho, Martha Medeiros, Michel Houellebecq. Perguntado sobre suas preferências pessoais, cita os grandes da literatura latino-americana: Gabriel García Márquez, Mario Benedetti, Mario Vargas Llosa, "embora este tenha se bandeado para a direita", Augusto Roa Bastos, Alejo Carpentier. Jorge Luis Borges e Julio Cortázar nem tanto, por considerar uma leitura mais difícil, "entreverada".


Usando tênis, calça jeans e camiseta branca, com uma barba grisalha e cerrada feito de bandido de história em quadrinhos, Monte também aproveita para falar sobre cinema, lembrar-se das tardes gastas no Cineclube do Uruguai na década de 60, e sobre a situação política na América Latina hoje, a qual acompanha de longe, pelos jornais. Ao seu lado, a cadela Laura, uma vira-lata malhada cuja presença é anunciada por um cartaz - "Cuidado: Cachorros Soltos" -, concentra-se em um osso de rabada. "Ela foi deixada há alguns anos aqui. No início, pedi para um amigo de Canoas (município da Região Metropolitana de Porto Alegre) largá-la longe. Ele botou na caminhonete e soltou em Esteio (cidade a 17 quilômetros da capital gaúcha). Uns quinze dias depois, ela estava de volta. Apareceu de novo no bar. Hoje, até cumpre uma função de segurança, de noite. Garanto que tem uma vida muito mais feliz do que qualquer um aqui. É uma cachorra anarquista, libertária. Sai para a rua a hora que quer, volta quando quer", analisa.  


Os livros, os filmes, os pôsteres e quadros espalhados aleatoriamente pelo bar, o gosto de Monte pela literatura, pelo cinema, pela política, e sua satisfação em falar sobre esses assuntos com qualquer um que busque no seu bar algo além de mais uma dose dão um inesperado ar cult ao ambiente tomado pelo cheiro de cigarros Dallas, Shelton, Derby ou Oscar's Blend. Se ficasse em um bairro boêmio da capital gaúcha, o Bar do Monte poderia atrair uma clientela como a do bar de seus enteados Federico e Diego, o Ossip, símbolo da boemia porto-alegrense. Tanto que já foi locação para dois filmes de produtoras gaúchas e, enquanto Monte concedia essa entrevista, outra profissional do cinema comparava os tons do seu bar com uma paleta de cores para preparar a filmagem de uma terceira montagem.


Monte gosta dessa função. Na fachada descascada de seu estabelecimento, a pintura anuncia: "Quadros, VHS Filmes, DVDs, Livros, Cigarros, CDs, Refris". Se pudesse, o bolicheiro ficava só com os quadros, filmes e livros. Mas nada disso lhe deu o dinheiro que esperava ("meus negócios são sempre um desastre", admite). Por isso, ele resiste. Atrás do balcão. 


Por volta das 19h, há pelo menos outros cinco clientes alcoolizados no bar, além do homem da Catuaba Carinhoza. Às 21h30min, o dono, que não bebe, colocará na rua os remanescentes, para no dia seguinte acordar-se às 7h30min, tomar café-da-manhã, seus seis remédios para o coração, ler o jornal e reabrir o bolicho às 8h30min e servir a primeira dose de cachaça. "É muito estressante trabalhar com usuários de drogas. A droga aqui é a bebida. Não tenho paz nunca. Vou ser sincero. Não sei como me adaptei a isso. É prova de que o ser humano se adapta a qualquer coisa. É como quando eu, depois de três anos na prisão, quase me sentia em casa". 




Reportagem: Sebastião Ribeiro / Cartola - Agência de Conteúdo

Uma produção exclusiva para Via Política.


   

quinta-feira, junho 02, 2022

A História da Hesperidina Bagley


Meu avô paterno cheirava a charuto. Meu avô materno cheirava a Hesperidina.


Se você é ansioso e já deu um Google, descobriu que Hesperidina é um flavonoide encontrado em frutas cítricas, vendida como remédio para varizes, hemorroidas, fortalecimento do sistema circulatório. Mas, antes de sair correndo para a farmácia, fique sabendo: o medicamento tem o mesmo efeito de placebo, ou seja, não funciona - acabei de ler em uma nota técnica da Anvisa. E, antes que a gente descubra que existem por aí hesperediners, já aviso: este texto não é sobre sistema circulatório. É sobre trago.




Hesperidina é também o nome de um um bitter argentino que para meu avô era o néctar dos deuses. Tem o mesmo nome do remédio porque, enfim, contém o aroma e o sabor extraído daquela parte branca por baixo da casca da laranja, de onde vem a hesperidina. Para ser mais preciso, se chamava Hesperidina Bagley, a bebida, pois foi formulada e lançada em 1864 pelo americano Melville Bagley, em Buenos Aires, Argentina.


Ainda não descobri se este cara era um gênio da coquetelaria, mas sabemos que era um gênio do marketing. Sabe teaser, aquela peça inicial que antecede uma campanha, dando uma pista, um spoiler, do que vem pela frente, sem revelar tudo? Ele foi o rei do teaser. Antes de distribuir o seu trago nos bolichos e pulperias portenhos, encheu a cidade de cartazes, onde se lia apenas… Hesperidina. Só. Foram semanas com os argentinos lendo aquilo sem saber o que era, até que as garrafas fossem distribuídas. Quando chegaram aos balcões, consagração!


Até aqui a história já estava boa, porém, nosso amigo Bagley fez um drink tão agradável que, pronto, estava todo mundo o imitando. E usando o nome, como se fosse genérico. Podemos imaginar que ele não ficou feliz. Fosse um cara comum, só resmungaria. Como gozava de algum prestígio, foi reclamar direto com o Presidente da Argentina, Nicolas Avellaneda, aquele mesmo que dá nome à cidade do Racing e do Independiente. Em 1876, então, o país criou seu órgão oficial de Marcas e Patentes. Marca número um registrada na Argentina: Hesperidina Bagley! Aposto que esta nem minha sogra Beth Ritter, su-mi-da-de em propriedade intelectual, sabia.


Meu avô José tinha cheiro de Hesperidina. Transpirava Hesperidina. Mas não é como se víssemos Hesperidina por toda parte pela casa, brindássemos em família com Hesperidina. Não! A Hesperidina era dele. Eu mesmo não lembro de ter provado. À época, achava que era porque ninguém gostava do trago. Hoje, creio que havia uma certa tensão da família relacionada a excessos alcoólicos de vovô. Até porque ele começava a exalar Hesperidina a partir das dez manhã. Na verdade, a lembrança que eu tenho é de que ele literalmente transpirava Hesperidina. Saía Hesperidina pelos poros. Era agradável, até. Entre mil tragos que se pode cheirar a, diria que Hesperidina está entre os mais agradáveis. O puro aroma de laranjas douradas do Jardim de Hespérides. Mas este texto não é sobre mitologia. 


Assim era o Doutor Pombo (assim, pelo sobrenome aviário, acompanhado pela titulação concedida aos advogados - chamavam meu avô): um homem da Fronteira. Um homem da estrada. Vivia entre Porto Alegre, Uruguaiana e São Borja. Na velha D10 branca, palanca no volante. No ônibus Planalto. No Ouro e Prata (com Cyrillinha laranja no refrigerador). Era ainda um homem grande, um tanto gordo, um tanto forte, bigode farto e branco. Ele já tinha uns 80 anos, decerto, quando o vimos chegando a pé, sozinho, pela estradinha de terra que dá acesso à fazenda. Suava e bufava. A inseparável mala de couro na mão - o "pesuelo", como a família dizia. Tinha andado oito quilômetros do asfalto até a casa - a bota, a camisa de dois bolsos (um pente na direita, uma caneta na esquerda), o corpo manchado pela terra vermelha. Esqueceram de pegá-lo no meio da estrada. Ele veio a pé, brabo, furioso, bufando, sem Hesperidina no sangue. À época eu andava com uma Pentax a tiracolo. Fotografei a cena. Eu tinha a foto. Mas não a encontro. E, juro, já nem sei se exisitiu, nem a cena, nem a foto. Simplesmente não faz sentido.


A garrafa de Hesperidina é marrom e bojudinha. Típica. Pela silhueta, os fãs do trago conseguiram identificá-la, bem pequenina, no fundo de um bolicho pintado pelo Molina Campos. Estou até agora procurando a garrafa na cena, mas eles já saíram gritando: Molina pintou a Hesperidina! Molina pintou a Hesperidina. É o equivalente platino de dizer: Da Vinci pintou o homem vitruviano! Meu avô comprava o bitter em caixas. Em São Borja, creio. Até pouco tempo, eu achava que era uma bebida comum, encontrada em qualquer boteco da Terra dos Presidentes.






Descobri há apenas dois meses que não é assim. Primeiro, busquei no Mercado Livre: zero anúncios brasileiros. Depois fui a trabalho a São Borja e prometi que voltaria com uma garrafa para casa. Achei que, perguntando, se encontrava. Mas o taxista, o recepcionista do hotel, o caixa do supermercado, ninguém sequer tinha ouvido falar de Hesperidina. Andei de bar em bar no centro. Perguntei a bolicheiros e gambás. Moços e velhos. Nada! Ninguém conhecia. Não era um vício fronteiriço; era um vício do meu avô.


Final do mês, volto a São Borja. Desde já, estou em busca de um chibeiro. Se não encontrar, cruzo a ponte. Há de ter em Hesperidina e, algum bolicho de São Tomé. Preciso provar esse trago. Saber que gosto tem. Em homenagem ao Doutor Pombo. 



(continua)


PS: sobre o vô Delmar e o cheiro de charuto, conto outro dia…