sexta-feira, junho 10, 2022


Matico, segue texto do Winni. Fica à vontade para melhorá-lo inclusive com fatos que conheça sobre ela e que julgues interessante acrescentar. Abço




As aventuras e desventuras de Winni

(Viaje com a brasileira de 23 anos que caminhou 200km no Saara e explorou sozinha a África árabe)

 

Em 45 dias de viagem pelo norte da África e Oriente Médio, Winni Rio Apa contabilizou 200 quilômetros de caminhada no deserto do Saara, um assalto sofrido e cinco detenções policiais. A última parte foi o preço que pagou por ter acreditado que a fraternidade e a liberdade eram valores universais.

Turismóloga, guia de expedições para a cordilheiras dos Andes na Argentina, aventureira por profissão e por paixão, essa curitibana de 23 anos, radicada em Florianópolis, começou a delinear sua última viagem no verão de 2009. Era um final de tarde na Lagoa da Conceição e ela admirava o pôr-do-sol em um trapiche com amigos. Ali, foi apresentada a Toco Lenzi, guia de viagens para o deserto, que relatou seu projeto de atravessar o Saara caminhando em oito anos, ao longo de diferentes expedições. "Na hora fiquei com aquilo na cabeça. Imagina.... Partir do nada e chegar a lugar nenhum!", lembra Winni. Desanimador? Para ela, desafiador. Somente a ideia da caminhada já lhe deixou tentada, mas uma coincidência nas conversas iniciais ajudou-a a se aproximar ainda mais do guia.

- Seu sobrenome é Rio Apa? O que você é do Thor Rio Apa - perguntou Lenzi.

- Sobrinha. Por quê?

- Há uns quinze anos eu estava na praia do Cassino (RS), filmando uma competição de carro a vela, e achei uma garrafa na praia. Dentro tinha uma poesia do Thor. Por um tempo me correspondi com ele.

Até hoje, Lenzi guarda a garrafa. Winni nunca foi vê-la. Mas iniciou imediatamente seu projeto 200Km no Saara 2010. Durante todo o ano passado, trabalhou como nunca. Deu duro como garçonete em dois restaurantes da Ilha. Ajudava em uma companhia de alpinismo industrial, a D-Edge, "na parte administrativa, mas quando precisava, me pendurava também nos prédios, para limpar vidros, essas coisas". Ainda obteve apoio com a Mountain Brasil, empresa que forneceu equipamentos para a ida ao Saara, e de um amigo designer que a ajudou com a logomarca de seu projeto, depois estampada em 110 camisetas. Elas foram vendidas em um kit contendo um CD de músicas da África Árabe e um cartão postal cuja imagem era a montagem de uma foto na qual Winni aparece no meio do deserto. Somente essa ação lhe rendeu R$ 3.300. Ao final do ano, ela já tinha os US$ 4,8 mil necessários para passar duas semanas no Saara e mais um mês viajando sozinha pela Mauritânia, Tunísia, Egito - embora a passagem esteja ainda "pagando em 10 mil vezes", como diz.

A primeira coisa que Winni descobriu ao chegar ao Saara, em 30 de janeiro deste ano, foi que o deserto não levava "do nada a lugar nenhum". Ou melhor: que o deserto não um só deserto, mas muitos, uma paisagem variada, com arbustos, pedras coloridas, cascalho, dunas, pequenas montanhas; pequenas cidades e aldeias aqui e acolá; nômades e comerciantes que aparecem e que se vão; uma cor diferente para o nascer e outra o pôr-do-sol. Acompanharam-na nessas descobertas um grupo de oito brasileiros, entre eles Lenzi, 12 dromedários para carregar as coisas e seis guias beduínos.

O dia dos caminhantes começava por volta das 6h30min da manhã, quando acordavam e iam tomar café na tenda árabe montada pelos guias locais: um pão de areia (assado sob a areia com brasa por cima), geléia, leite em pó porque de cabra todo dia enjoaria, café, chá e os inseparáveis queijinhos La Vache que Rie, companheiros de todas as horas na viagem. Às 8h, o grupo partia em caminhada, e, apesar de um lanchinho com queijo durante a manhã, só parava mesmo às 13h30min, quando os beduínos remontavam as tendas e o grupo almoçava: atum com batata e um suco Tang de sabor variável. A seguir, hora de fazer nada. Deitar, rolar, abanar as moscas, espanar a areia grudada no suor do corpo, tentar fazer o tempo e o calor de 40 graus à sombra e mais de 50 graus ao sol passarem. Para então, ao fim de tarde, aproveitarem os matizes do cair do sol sob a névoa de areia e aguardarem o frio da noite. O jantar era com carne de cabra seca, cenoura, batata, tomate e cuscuz ou macarrão. Montar as barracas era a parte mais fácil do dia. "É uma barraca especial (tipo quéchua). Como se fosse uma pizza gigante que você joga no chão e em dois minutos ela se arma sozinha. Difícil era transformar aquilo em pizza de novo", conta a viajante.

Mas nem tudo era tão fácil como a barraca quéchua. Passar sete dias só com banho de paninho úmido, fazer do ar livre o seu banheiro foi o de menos para Winni. O terror da caminhante foram as bolhas nos pés. Levar as botas de caminhar na neve dos Andes Argentino para caminhar na areia do Saara definitivamente não foi uma boa ideia. No oitavo dia, apesar da faixa enrolada todo dia, seu pé estava em frangalhos, e ela teve de se socorrer do dromedário. A solução na jornada seguinte foi improvisada, mas funcionou. "No nono dia, apelei para o tênis número 43 emprestado por um colega. Ficou grande no meu pezinho 38, mas aí consegui caminhar", diverte-se.

Durante a expedição, Winni manteve a cabeça coberta com panos, para manter a umidade do corpo e seguir a tradição local para as mulheres. "Coberta, me sentia muito mais charmosa, bonita, as pessoas me olhavam com respeito", revela (impossível ouvir essa descrição, olhar para íris esverdeada de Winni e não lembrar da célebre foto da garota afegã de olhos ainda mais verdes eternizada pelo fotógrafo Steve McCurry, na capa de uma National Geographic). Do contato com os guias beduínos, com nômades que levavam, literalmente, a casa sobre camelos e com os moradores das aldeias pelas quais passou, a jovem aventureira afirma só ter trazido boas lembranças. "O deserto é maravilhoso, foi um dos lugares que me senti mais segura em minha vida. Aquelas pessoas... Eles têm uma cultura de compartilhar experiências. Em muitos lugares me ofereciam leite de cabra em uma bacia, às vezes já estava verde a bacia (ri), mas era importante para eles aquela troca, beber do mesmo leite. E também tem o ritual da roda de chá. O chá para eles é como o relacionamento das pessoas. Costumam dizer que na primeira rodada do chá, ele está amargo como a vida. Na segunda, doce como o amor. E, na terceira, suave como a morte", conta Winni.

Supostamente a parte mais dura de toda a viagem, a experiência no Saara, entre Atar e Oásis de Terjit, na Mauritânia, foi a mais tranquila para a viajante. Complicada foi a sequência seguinte: os 30 dias como backpecker solitária na África Árabe, em cidades da Mauritânia, Tunísia e Egito. A beleza das pirâmides egípcias, a mística do nascer do sol no Monte Sinai, para Winni, a julgar pelo tempo que dedica a cada relato, tudo isso parece menos importante do que suas desventuras urbanas. Hoje ela conta com divertimento o que passou. A começar pelo assalto que sofreu na Tunísia, quando, depois de fazer amizade com dois locais, foi roubada por eles, ficando com menos 150 euros de um dinheirinho que já estava contado. Ao fugir de trem, os assaltantes ainda esfregaram as notas na janela da composição e deram tchauzinho para a brasileira. Sem grana para pagar albergue, a bela Winni, que hoje conta essa história vestindo um elegante casaquinho roxo em um charmoso café de Porto Alegre, teve de dormir no meio da calçada. Acordou com a própria boina, despropositadamente deixada ao chão, recheada com três moedas. Misericórdia com uma mendiga. Que pagou o pão do café da manhã. Não bastasse isso, na Tunísia ela teve seu primeiro problema com a polícia. Parada na rua, não pôde apresentar o passaporte que deixara na embaixada do Egito para pegar o visto. Quase foi presa, mas uma ligação para os diplomatas egípcios convenceu os policiais.

Até quando tudo dava certo, havia uma certa tensão no ar na programação de Winni. Como quando foi convidada com uma amiga backpecker que conheceu na viagem para uma festa de casamento no Egito. Só esqueceram de dizer que era no dia dedicado ao noivo (os casamentos na região são realizados em três dias: o primeiro para o noivo, o segundo para a noiva e o terceiro para a família dos dois). Resultado: as duas turistas eram as únicas mulheres em uma festa para 300 homens no meio da rua, regada a muito chá, pipoca e açúcar caramelado. "Todo mundo queria tocar na gente, crianças, todo mundo! A gente era atração turística. Ficavam todos os convidados sentados no chão e nós duas numa cadeira". O grand finale foi quando elas foram convidadas - ou melhor, convocadas - a dançar. Apesar de serem as únicas mulheres do arrasta-pé, tudo ocorreu no maior respeito.

 Como se pode ver, Winni gosta mesmo do inusitado, do diferente. E uma amiga japonesa que encontrou na viagem também. Tanto que quando receberam o convite de um beduíno para visitar uma aldeia no meio de um mangue no interior do Egito, a oriental não teve dúvidas. Estudiosa desse tipo de ecossistema, foi a primeira a dizer: vamos lá! Ainda que para chegar ao local tivessem de pegar um ônibus, descer na estrada, no meio do nada, e caminhar 7 quilômetros até o mangue. Foi o que as duas fizeram. Só não contaram com a polícia, que lá, no meio do nada, abordou-as. De um lado as turistas argumentavam em inglês que tinham o direito de ir e vir e de conhecer o mangue. De outro os policiais respondiam, em mímica, que elas não podiam, que era perigoso, que iam ser mordidas por cachorros, que virariam escravas sexuais. E assim se estendeu das 17h até às 23h uma confusão que terminou com Winni e a japonesa em uma cela de cadeia. Pelo menos a cela era melhor do que muitos lugares que Winni havia dormido e quando chegou 1h da manhã o delegado precisava ir embora e mandou soltar as meninas.

Mas os problemas de Winni com a lei estavam recém começando. Ela ainda teria de enfrentar três detenções em Israel, onde só entrou para pegar um vôo mais barato até Paris, de onde retornaria ao Brasil. Alheia aos meandros da política e dos conflitos na África e no Oriente Médio, foi detida por três vezes pela imigração israelense por ter o passaporte carimbado por países árabes com os quais o estado judeu tem um histórico de conflitos. A primeira vez na divisa terrestre, em Eilat, junto à Faixa de Gaza, fronteira com o Egito. A segunda no aeroporto de Eilat. E a terceira no aeroporto de Tel Aviv. Em todas elas, foi interrogada: o que você foi fazer na Tunísia? Você sabe que a Al Qaeda está na Mauritânia? Que terroristas você conheceu na viagem? O que eles lhe deram para trazer? O que você vai explodir aqui? Acreditamos que você faz parte de um grupo de terroristas! As perguntas (e acusações) eram sempre as mesmas, se repetiam até extenuar a viajante. Por diversas vezes, Winni teve de ficar de calcinha, passar por detectores de metais, viu revirada sua mala. De suas coisas, finalmente acharam a bomba. E a viajante foi confrontada com a matéria-prima do artefato: um saco de areia que trouxera do Saara, fios da máquina fotográfica, pilhas da lanterna, uma pinça, uma lixa. "Rapaz, eu nem sabia que dava para fazer bomba com aquilo", ri ela hoje.

Ao fim, Winni foi liberada. Mas teve de deixar a "bomba". Tudo bem, disse, mas o saco de areia eu levo.

- Por quê? - perguntou o policial.

- Porque é importante para mim - e já foi pegando a lembrança.

Depois de ter até mesmo viajado algemada em um voo entre Eilat e Tel Aviv, Winni finalmente chegou a Paris e então ao Brasil. Com o seu saco de areia do deserto intacto, souvenir maior da viagem. Para muitos, a insistência em contestar a polícia egípcia, de querer visitar um vilarejo ermo no meio do mangue, a ousadia de pedir o saquinho de areia aos israelenses, tudo isso pode ser ingenuidade juvenil. Para Winni, não passa de aventura.

Filha de um advogado com uma artesãa, ao ser questionada sobre a origem de seu espírito aventureiro, Winni recorre aos tempos de infância quando vivia fraturada por explorar o pátio do vizinho e obras inacabadas na cidade. E à adolescência, quando viveu na praia da Pinheira (SC), com o avô, Wilson do Rio Apa (confira perfil na VPTV), marujo destemido, "Terror dos Mares", como ela recorda, e um homem que aos 85 anos ainda acredita na liberdade acima de tudo. À luz da história do avô, fica fácil entender a neta aventureira.

 

Texto originalmente publicado em 2010 para o site Via Política.

Por Sebastião Ribeiro

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