Eu devia ter medo de temporal. Muito. Quando tinha 3 ou 4 anos, fiquei um dia aos cuidados de minha avó - não era comum, mas eu estava de novo com amigdalite e faltei à aula. Naquela tarde, veio uma tormenta de primavera daquelas. A vó entrou em transe e começou a rezar freneticamente, terço na mão, absolutamente alheia ao neto. Me senti sozinho e esquecido. Traumatizei.
Também tinha as tias que cobriam os espelhos no temporal. Pra quê?
Um dia entendi melhor o pavor da vó. A familia dela tem campo num lugar chamado Cândida Vargas. Perto de Itacurubi e Unistalda. Em um desses anos, não faz muito, saiu aqueles mapas oficiais das cidades mais atingidas por raios em 12 meses. As duas constavam nos Top 5 do Brasil. Nunca soube se era uma coincidência no ano ou condição geográfica e geológica permanente. Sei que lá de fato as tormentas assustam.
Herdei do meu pai o oposto do que traumatizei com a vó. Quando o dia virava noite, ele ia pra janela e ficava olhando admirado a chuva e os raios. Que linda a natureza! Que venha água! Agora tudo vai verdejar! É lindo, do topo de um edifício de concreto bem armado. Mas a casa lá de fora (a mesma que ninha avó morou) parece recheada de barro. O pararraio é um cabo torto que corre a meio palmo da parede externa. Eucaliptos do potreiro são queimados por raios. E todo ano se perde alguma rês. Última tormenta que presenciei, me enfiei debaixo das cobertas, mas a cama e a parede tremeram com o estrondo de um raio que deve ter caído ou no pararraio ou a menos de 50 metros da casa. Ninguém gritou nem falou nada na hora. Silêncio total. Só uns 30 segundos depois as pessoas começaram a se mexer e comentar? Tu viu este??? Tu viu??? Como se desse pra não ter "visto"...
Também, outra vez, choveu muito quando a peonada estava lidando no campo. Quem conhece o ritmo do Pampa sabe que o tempo passa diferente por lá. Gauchada não aperta o trote, o papo, o mate, a carne no fogo. Ninguém sai correndo pelas coxilhas como em filme de bangue-bangue. A vida no campo não é um faroeste. É mais ou menos como um filme japonês - devia ser Kurosawa - que vi com minha mãe quando adolescente e traumatizei (traumas, traumas, Freud me acode!)... A câmera parou numa rã coachando e ali ficou por uns cinco minutos. Assim é o ritmo do homem do campo. O ritmo da natureza. Mas um dia estavam de 'a cavalo', longe das casas, quando se armou a tormenta. Um raio caiu a menos de 100 metros da gente. Deu aquelale clarão, um cavalo rodou, e a peonada começou a galopar freneticamente pras casas. Meu coração saía pelas orelhas. Lembrava um pouco os veranista fugindo em desordenado bando da praia quando o céu escurecia.
Na praia, aliás, a tormenta dá um misto de medo com excitação. Por um lado, a vontade de entrar no mar, neutralizar os pingos grossos da chuva. Por outro, o medo racional dos raios. Recordo de um verão lá peloscanos 90, quando chegou a notícia de que um homem morrera de raio na praia grande de Torres. Isso foi minutos depois logo de eu ter corrido da areia da mesma praia e ido pra casa. A noticia veio no rádio de pilha da cozinheira da minha tia, porque o bairro inteiro ainda estava sem luz. Lembro da varanda em que estava quando me contaram e da sensação palpável de que o risco era real.
Hoje, quando estou na cidade, tenho o fascínio do meu pai pela tormenta. Quando estou na praia ou no campo, um misto de fascínio com pavor. É nesta hora que gostaria de ter um recurso que a vó tinha, mas me falta: Fé.
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